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Não são “notícias” – mas deviam ser
Hoje é domingo (8 de Outubro de 2006), Oaxaca, um belo céu limpo, solarengo, uma manhã boa para saborear um tamal [uma espécie de farinha de milho, açucarada e envolvida na própria folha da maçaroca, petisco típico do México] e um café quente ao pequeno-almoço. Desci a rua até ao Mercado Sanchez Pasques, para comprar tamales para a Nancy e para mim. O mercado estava apinhado, pessoas e cães de um lado para o outro. Lentamente atravessei a multidão, em direcção à senhora dos tamales que tem um grande balde de alumínio em cima de um braseiro. O vapor escapava-se da toalha colocada em cima da enorme caldeira, condensando no ar fresco da manhã.
Uma secção interior do Mercado. Leite e seus derivados. Foto, 2006-10-08, por G.S. Sem direitos reservados.
Acabei de passar pela barraca dos jornais na parte exterior do mercado. Grandes letras pretas no Noticias [1] diziam que o movimento popular já tinha rejeitado a “oferta” do governo federal, feita na quinta-feira. Já era mais do que previsível que a APPO (Assembleia Popular do Povo de Oaxaca) não iria aceitar a dita oferta. Para já, esperemos, apenas haverá continuação das ameaças (principalmente por parte do governo estadual) e a continuação das chamadas negociações, mas sem violência em larga escala. As conversações são infinitamente preferíveis ao ataque armado, apesar de não ser isso que os media corporativos desejam.
Revolução sem violência. Uma ideia
cuja hora parece estar a chegar.
Logo após ter visitado Oaxaca pela primeira vez, em 1996, eu escrevi, referindo-me aos dois principais artigos da minha página na Internet [2], “Não tenho dúvidas de que as ideias expressas nestes dois artigos são absolutamente cruciais para a revolução social que muitos de nós tão ansiosamente esperamos conseguir (como se pode ver pelas grandes acções contra a Organização Mundial do Comércio, há umas semanas atrás). Se estas ideias prevalecerem, teremos uma revolução com um mínimo absoluto de violência.” (acrescentei o sublinhado).
As verdadeiras notícias da actual luta em Oaxaca são precisamente as que os governos – Estado de Oaxaca, Federal do México, EUA e Canadá – e a grande maioria dos media corporativos – TV, rádio, jornais e revistas – estão a fazer tudo o que podem para ignorar, esconder e distorcer. Para além disso, eles mentem descaradamente sobre o que está a acontecer.
As verdadeiras notícias consistem em dois factos salientes: 1) o movimento popular, que se desenvolveu após o ataque aos trabalhadores do ensino, em 14 de Junho de 2006, tornou-se uma vasta coligação de muitos grupos diferentes da sociedade Oaxaquenha; e 2), que pode ser ainda mais importante, quase todos os grupos aderentes estão fortemente empenhados numa luta não violenta baseada na desobediência civil [3]. Claro que, a desobediência civil significa “quebrar a lei”, como reclamam os perpetradores do mortífero regime de “lei e ordem” do governador estadual e do governo federal, ao mesmo tempo que se preparam para esmagar a rebelião com ataques militares e para-militares [4]. Estão mortinhos por lançar uma “operação de limpeza”, por toda a região, para “limpar” os “subversivos” que aderem e suportam a Secção 22 do Sindicato de Trabalhadores da Educação e/ou a APPO.
Esta “guerra suja” estadual [refere-se ao estado de Oaxaca], de pequena escala, tornou-se um habitual modus operandi, logo a seguir à destruição feita por operacionais estaduais, das poderosas instalações de transmissão de TV e rádio ocupadas pela APPO, em Fortin Hill. E a reacção imediata da APPO, no próprio dia, foi ocupar e transmitir a partir de várias estações comerciais, ambas as acções ocorrendo no dia 21 de Agosto de 2006.
Naquilo que foi uma clara tentativa de atemorizar e aterrorizar os apoiantes de APPO que estavam a fazer a segurança das estações de rádios ocupadas, agentes estaduais armados efectuaram disparos a partir de viaturas em andamento e houve espancamentos e raptos. Depois de algumas semanas, durante as quais os membros da APPO ficaram cada vez mais revoltados e determinados a persistir, e depois de ter havido reacções na imprensa contra o governo, incluindo condenações do abuso dos direitos humanos levadas a cabo por agências internacionais como a Amnistia Internacional, o governo do estado abrandou, aparentemente seguindo instruções do governo federal.
A fase actual (IV) da luta
Num artigo anterior [3] descrevi os primeiros três meses e meio da luta, dividindo-a em 3 fases algo arbitrárias:
Fase I, a partir de 15 de Maio de 2006, o início da greve dos trabalhadores da educação,
Fase II, a partir de 14 de Junho, altura em que o estado atacou o acampamento grevista, e a
Fase III, a partir de 1 de Agosto, quando mulheres da APPO se apoderaram das estações de TV e rádio do estado.
Com a matinal destruição das instalações de transmissão de televisão e rádio em Fortin Hill por agentes armados estaduais, a 21 de Agosto, emergiu uma situação algo diferente. Por conveniência, e mais uma vez arbitrariamente, chamarei a este período (que ainda decorre) a quarta fase da luta. Neste momento falta só uma semana para completar dois meses. As suas características principais têm sido (1) a continuação de uma baixa taxa de mortes causadas pelo conflito, provavelmente não mais de 6 até agora [5], (2) uma intensa guerra de propaganda na qual, apesar do imenso controlo dos media pelos governos e os seus aliados corporativos, grande parte da verdade sobre o conflito está a passar, (3) aparentes intermináveis sessões de “negociação” entre o governo e o movimento, sobre questões que são à partida inegociáveis, (4) um chorrilho de declarações governamentais alternando entre promessas de não utilizar a força e ameaças do uso da força (incluindo movimentação de tropas e sobrevoos de helicópteros militares na zona), com o esperado efeito psicológico na população, e (5) contínuo e aprofundado desgaste da economia dentro desse estado.
Compreender a situação actual,
um seguro ponto de partida.
Eu acredito que não pode haver dúvidas que se as forças políticas e económicas aliadas do México estivessem confiantes que podiam lançar um ataque com sucesso para esmagar a revolta em Oaxaca, o teriam feito sem nenhum momento de hesitação. A partir deste facto (considero-o um facto, por razões que explicarei a seguir), conclui-se que se não houve esse ataque a grande escala (para além do abortivo ataque de Ruiz a 14 de Junho, feito por forças do estado), os “maiorais” na Cidade do México, têm estado, até agora, receosos que este tipo de ataque militar, provavelmente com muitas mortes e destruição, possa fazer ricochete, e têm medo de vir a perder o aparentemente ténue controlo que ainda têm.
Já perceberam que toda a gente está convencida que a chamada vitória eleitoral de Felipe Calderon foi uma fraude, e eles próprios sabem que assim foi – eles sabem que André Manuel López Obrador (AMLO) foi o verdadeiro vencedor. Podemos estar certos que a eleição presidencial por resolver aumenta a hesitação da coligação dos partidos PAN e PRI [6] em agirem decisivamente contra a rebelião oaxaquenha. As pessoas sabem que a toda a superestrutura nacional desliza na profunda lama da corrupção. Apenas na base da sociedade se consegue encontrar honestidade e adesão a princípios ligados à real necessidade de uma sociedade justa e equitativa. Lá se foram as convicções.
Porque é que não se podem contar as verdadeiras notícias? No centro da luta – a verdade que tem de ser escondida.
Se a verdadeira natureza da actual revolta fossem bem divulgadas, não apenas no México mas em toda a América do Norte, não haveria justificação para a esmagar que encontrasse aceitação popular. Um facto é que Oaxaca foi governada quase durante 80 anos pelo PRI, que tem sido impiedoso no seu controlo, impondo uma pobreza calamitosa na maioria da população, de forma que um grupo de elite possa desfrutar de extremo poder e riqueza. O regime estadual grosseiramente injusto foi muito aliado à igualmente impiedosa estrutura de poder na Cidade do México, e com grandes interesses financeiros em países estrangeiros.
O governador Ulises Ruíz Ortíz, foco de tanto ódio, é apenas uma ponta da estrutura dominante de Oaxaca. Um ser humano tão vazio de visão como de compaixão, ele é fútil na luta pelo poder dos seus antigos co-mandantes do PRI, agora alinhados com o PAN contra o PRD, servindo apenas para regatear e para desviar as atenções das exigências fundamentais do movimento popular e serve também como joguete entre o governo e o movimento popular. O primeiro raio caiu em cima dele, “Ulises ya cayó!, ya cayó!, ya cayó! [Ulises já caiu!]” gritaram e ainda gritam insistentemente milhares de gargantas. Visto como um tirano odiado, ele foi o alvo inicial óbvio. Mas os indivíduos são sempre dispensáveis se a estrutura dominante permanecer intacta. Livrarem-se simplesmente de Ulises, por si só, não vai alterar significativamente o governo de Oaxaca, assim como livrarem-se de George W. Bush, por si só, não implica uma mudança significativa na estrutura dominante dos EUA. Como eu escrevi no início de Julho, de grande impacto na sociedade, se se conseguisse atingir, seria a exigência feita inicialmente de “substituir o governo político pela Assembleia Popular, sem partidos políticos” … “O crescente apoio ao movimento para expulsar o governador Ulises Ruiz Ortiz (URO) e para modificar a forma de governo no estado de Oaxaca encorajou os participantes em a insistirem numa verdadeira mudança revolucionária a esse nível.”[7] Tal desenvolvimento seria um pesadelo para todo o sistema capitalista, potencialmente ameaçador à continuidade da sua existência, como eu argumento seguidamente.
Auto-governo independente, uma ameaça ao capitalismo.
Este é um ponto chave do conflito. No mundo de hoje, o sistema capitalista domina a vida no universo. Baseia-se na sua capacidade para explorar quer os recursos naturais (florestas, vento, água, etc.) quer as pessoas, para atingir o lucro material e o poder de sectores dominantes da sociedade. Está rapidamente a destruir a biosfera, da qual toda a vida depende, incluindo a vida de milhares de milhões de pessoas. Toda a gente sabe isto. Apenas são discutíveis alguns detalhes. A destruição é manifesta.
Ao pedir o fim de um governo hierárquico em Oaxaca, substituindo-o por um sistema de múltiplas assembleias populares numa democracia directa, face a face, a nível local, sem partidos políticos, com um máximo de autonomia local, a APPO desafiou a estrutura do poder dominante, não apenas a reformar-se, mas a desistir totalmente do poder, do seu controlo de todo o estado. Não é preciso ser um génio para perceber que a maioria dos ricos, privilegiados e poderosos beneficiários deste injustíssimo sistema, não pode nem pensar em perder o seu estatuto especial. Vão lutar como loucos para evitar que isso aconteça.
O contágio da revolta. Verdadeiros dominós!
Não são apenas os oaxaquenhos privilegiados que estão ameaçados pelas exigências da APPO por uma reorganização social. Nem são apenas os mexicanos e estrangeiros que beneficiam directamente da exploração dos recursos naturais e/ou da mão-de-obra barata oaxaquenha (por exemplo, os empregadores norte-americanos de trabalhadores agrícolas oaxaquenhos). Qualquer um cuja riqueza material venha, em parte, da exploração de recursos naturais noutras partes do mundo e/ou através da exploração de mão-de-obra barata, pode ser afectado, porque se o povo de Oaxaca conseguir acabar com a sua própria exploração e da sua terra, por capitalistas e corporações mexicanas e estrangeiras, podem servir como exemplo e inspiração a outros povos. De facto, a luta aqui já tocou a imaginação de muitos mexicanos e mesmo de estrangeiros, pela extensão que as verdadeiras notícias sobre esta luta atingiram para além das fronteiras do México.
Naturalmente, qualquer ameaça aos lucros, quer actual quer futura, prestes a ocorrer ou apenas hipotética, é uma preocupação urgente de todo o sistema capitalista. É o “dinheiro”. É essa a preocupação dominante. Para perceber quão dominadas pelo dinheiro estão as mentes dos capitalistas e dos que aspiram a ser capitalistas, temos de relembrar o maravilhosamente simbólico acto de Abbie Hoffman, que desde um varandim da Bolsa de Valores de Nova Iorque, despejou o conteúdo de um saco cheio de notas de dólar na zona onde se fazem as negociações o que levou a uma paragem de todas as operações, dado que os gananciosos corretores se espalharam pelo chão a tentar apanhar o maior número de dólares que conseguiam. Totalmente individualistas, cada um a tentar avidamente amealhar para si tudo o que consegue, sem pensar no bem comum. É esse valor da anti-civilização incorrectamente chamada “Civilização Ocidental”.
O verdadeiro desafio é à Anti-Civilização Ocidental, substituí-la de forma não violenta por uma verdadeira civilização
A luta em Oaxaca é uma jogada com a parada bem alta. Por toda a América Latina, a imposição do neo-liberalismo durante as últimas décadas trouxe uma crescente polarização severa entre os economicamente ricos e as muito mais numerosas – e a crescer – classes empobrecidas. Como no livro de Bruno Traven, “The Rebellion of the Hanged [A revolução dos enforcados]”[8], tal como em Chiapas com a revolta Zapatista maioritariamente indígena, também em Oaxaca, o estado mexicano “mais indígena”, quando finalmente a opressão se tornou grande demais para aguentar, Ya basta! – Já chega! – foi o grito, a palavra de ordem. Preferível perder a própria vida do que continuar a sofrer uma existência tão degradante.
O sistema global capitalista não seria tão ameaçadoramente desafiado se fosse apenas o povo de Oaxaca – entre 3,5 e 4 milhões – e a sua terra e economia a serem excluídos do esquema capitalista de exploração de recursos naturais e pessoas. Isso seria uma perda, mas apenas uma gota no grande balde global. A ameaça à burguesia é que o movimento popular de Oaxaca sirva de exemplo de grande coragem moral por parte (neste caso) de uma população maioritariamente indígena, negociando inteligentemente a sua própria libertação da opressão, numa época de comunicação instantânea global, e fazendo-o sem ameaçar os seus adversários com a luta armada. Merecidamente, mantém de forma inquestionável uma grande elevação moral, em forte contraste com o desdenhado governador e todos os políticos interesseiros que andam à busca de uns dinheiros mal amanhados e ameaçam, com vontade de usar, a força bruta. A moeda da anti-civilização: dinheiro e força bruta.
Os governos estão ansiosos por incitar uma resposta violenta por parte dos trabalhadores da educação e dos membros da APPO, porque isso legitimaria, aos olhos de muitos, um ataque militar musculado para esmagar a rebelião. Os media corporativos, em conjunto com toda a estrutura do gigante capital, que têm como principais protectores os estados, também querem que a rebelião – até ao momento determinantemente não violenta, apesar de militante – perca as estribeiras e responda violentamente aos ataques que lhe são feitos. Dentro da APPO, e talvez também na Secção 22 do Sindicato de Trabalhadores da Educação, há algumas facções que glorificam a ideia de uma “luta armada contra o estado repressivo” e provavelmente algumas cabeças mais quentes também gostariam de bater nalguns polícias, sem estarem a perceber todas as consequências de fazer um ataque às forças estatais. Felizmente, os elementos mais maduros prevalecerem neste movimento e a calamidade de uma repressão militar a grande escala tem sido evitada, pelo menos até agora. Como bem escreveu James Herdo no seu ensaio seminal, Getting Free [9],
“…É impossível derrotar a nossa classe dominante pela força das armas. O nível de poder de fogo actualmente possuído pelos grandes governos, e mesmo pelos pequenos, é simplesmente espantoso. É comprado com a riqueza expropriada a milhares de milhões de pessoas. É ridículo que algum movimento de oposição pense que pode adquirir, manter, e usar armamento tão vasto e sofisticado… Seria preciso um império tão grande e rico como o próprio capitalismo para o combater com as mesmas armas. Isto é algo que as classes trabalhadoras do mundo nunca terão, nem é isso que queremos.
Isto não quer dizer, no entanto, que não devemos pensar de forma estratégica, para ganhar, derrotando os nossos opressores. Significa que temos de aprender como destruí-los sem disparar um único tiro. Significa que temos de recorrer a, e inventar se necessário, outras armas, outras tácticas.”
Sedentos de sangue — o sangue dos oprimidos
Aliada aos governos, que pretendem esmagar a rebelião e procuram, com ataques armados dos seus agentes, incitar respostas armadas, está a vasta falange dos meios de comunicação corporativos detidos pelos mesmos capitalistas e corporações que servem o governo. Estes meios de comunicação sujeitam-nos a uma infinita torrente de mentiras, de forma a persuadirem as pessoas que os trabalhadores da educação, os aderentes da APPO e os outros grupos populares que estão a exigir uma mudança, são um monte de sórdidos descontentes que estão a quebrar a lei e a provocar violência. O propósito da sua propaganda é convencer a população em geral de que uma intervenção militar é não apenas necessária, mas mesmo desejável.
Para além disso, os donos dos media estão absolutamente empenhados em manter o sistema do gigante capitalismo do qual depende a sua classe altamente privilegiada, pelo seu estatuto especial. A verdade é que a pretensão do movimento em substituir as estruturas hierárquicas de governação baseada nos partidos políticos, por assembleias populares não hierárquicas – uma multitude delas – com um máximo de autonomia local, é uma ameaça directa ao sistema capitalista. Essa é a mais profunda verdade, não o ódio a Ulises, que tem de ser abafada. É o completo sistema de valores do México Profundo [10] que se está a erguer, e não apenas no México mas em grande parte da América Latina, a rejeição do capitalismo e de todo o seu sistema de valores distorcidos, valores estes que ditam a supremacia do dinheiro sobre a própria vida. Esta é
a verdade que ameaça atingir esses beneficiários do gigante capitalismo. É por isso que estão determinados a omiti-la.
Muitas pessoas que confiam nos meios de comunicação em massa para obterem a sua informação sobre as notícias do mundo, irão opor-se a esta minha condenação dos media corporativos. Irão sublinhar, correctamente, que muito do que vêm nesses meios de comunicação é verdade. Mas isso não invalida a minha crítica. Há uma recusa invariável em fornecer toda a verdade, e fazê-lo na altura certa, para que os “factóides” que noticiam possam ser compreendidos dentro do contexto. Muitas vezes é possível afirmar meias verdades sem ameaçar ninguém nos sectores dominantes da sociedade, e de facto, estas verdades parciais, factóides fora do contexto, podem beneficiá-los.
Considerem, por exemplo, o actual conflito entre o movimento de massas em Oaxaca e os governos federal e estadual. Há repetidas alegações governamentais de que a rebelião está a ser apoiada por grupos guerrilheiros armados. Tão dramáticas afirmações são largamente divulgadas pelos media corporativos, quer no México quer no estrangeiro. A meia verdade em que se baseiam estas notícias é que no estado de Oaxaca existem, tenho quase a certeza, elementos de alguns grupos armados de guerrilha – estou a lembrar-me do Exército Popular Revolucionário [11]. A mentira, por vezes explícita, é que é feita uma ligação deliberada entre a luta cívica da APPO e dos trabalhadores da educação com formações revolucionárias armadas. É mais chamativo imaginar um grupo ao estilo do Che Guevera, atacando agentes do estado com armas letais, do que observar um grupo de professores, sentados numa assembleia, a discutir resoluções.
Iniciativa de Cidadãos, Diálogo para a paz, democracia e justiça em Oaxaca. Foto, 2006-10-12, por G.S. Sem direitos reservados.
Os incidentes violentos, apesar do seu baixo número, como se verifica pelo pequeno número de feridos e das extremamente poucas baixas mortais em cinco meses, são apregoados pelos media como “confrontos armados”. De facto, este é um grave engano, sugerindo como sugere que há um confronto entre dois ou mais lados equivalentemente armados. Mas são só os agentes governamentais, quer de uniforme quer sem uniforme, que andam armados. Estes mercenários enfrentam os professores e outros membros da sociedade civil, que estão “armados”, quando muito, com paus, bastões, pedras e – ocasionalmente – alguns com machetes (uma arma letal em combates corpo a corpo, mas nada que se compare com pistolas automáticas ou armas semi-automáticas da polícia e dos paramilitares).
Paz — ou — banho de sangue?
Eu acredito que ninguém pode, nesta altura, prever o desfecho desta luta popular. Por um lado, como argumentei anteriormente, o nível é potencialmente alto sobre o que está em jogo a larga escala para o sector capitalista. Por outro lado, um entendimento negociado que deixe o sistema político tradicional de Oaxaca basicamente intacto, independentemente das promessas que sejam feitas sobre a introdução de “medidas de protecção” dos direitos humanos e outros, irá seguramente implicar a continuação de um regime de grande injustiça económica para a maioria, forçado com assassinatos, corrupção, detenções políticas e tortura, com impunidade para os agentes do estado que efectuem essa opressão. Especialmente, os indivíduos mais proeminentes da APPO, da secção 22 do Sindicato de Trabalhadores da Educação, ou outros grupos aliados, verão imediatamente a sua vida posta em risco.
À medida que entrava no solarengo Mercado Sanchez Pasques e absorvia com os olhos e ouvidos as animadas conversas dos clientes e dos vendedores, crianças divertindo-se com pequenos brinquedos, a vida do mercado, a vida das pessoas, pensava noutros mercados, em como as pessoas comuns continuam as suas vidas na normalidade, dia após dia, outras pessoas em Sarajevo, Beirute, Bagdade. Só podemos desejar que a confluência de forças sociais e de consciências em Oaxaca, no México e no mundo, seja tal que não haja um banho de sangue, nem grande nem pequeno, e que um verdadeiro milagre mexicano comece a mostrar ao mundo como passar da anti-civilização da morte para uma verdadeira civilização de vida.
NOTAS
[1] - O Noticias, o melhor jornal diário da cidade de Oaxaca. . A sua edição on-line, em http://www.noticias-oax.com.mx/index.php , está por vezes atrasada um dia em relação à edição impressa..
[2] - Os dois artigos são referidos na minha nota, “Encontrando o Ouro: A génese deste projecto de ‘estratégia de revolução’”, que se encontra em http://site.www.umb.edu/faculty/salzman_g/Strate/1996-08-30.htm .
[3] – A luta não violenta. Um relato dos primeiros 3 meses e meio pode ser visto em http://site.www.umb.edu/faculty/salzman_g/Strate/2006-08-29.htm .
[4] – Sobre a preparação do esmagamento da rebelião à força, vejam a minha tradução do relato do La Jornada de 7 de Outubro de 2006, “APPO revela que Ulises Ruiz Ortiz já tem os planos para uma nova operação repressiva”, que está em http://site.www.umb.edu/faculty/salzman_g/Strate/2006-10-09.htm .
[5] – Taxa de fatalidades extremamente baixas. Esta taxa, de cerca de 6 nos cinco meses desde que começou a greve, tem de ser comparada com a taxa “normal” do estado de Oaxaca nos anos anteriores, quando alguns professores de comunidades remotas da cidade de Oaxaca, que “arranjavam problemas” à estrutura local de poder, se viam sujeitos a assassinatos por caciques ou agentes contratados por eles.
A enorme brutalidade e a falta de registos do governo do PRI em Oaxaca (e no país) são exemplificadas num artigo com fotografias publicado a 23 de Março de 2006 no jornal Noticias, p.10A. A 27 de Julho de 2004, o ex professor do ensino básico de Huautla, Serafín García Contreras, 64 anos, foi espancado até à morte por Jacinto Pineda e outro homem. Pineda foi dirigente do grupo do PRI, Movimiento Territorial, em Huautla. Uma fotografia mostra-o a envergar um grande pau contra o idoso caído no chão, ainda vivo. Uma segunda fotografia, tirada pouco tempo depois, mostra Pineda com a sua camisa carregada de suor.
A 22 de Junho de 2006, Roberto Madrazo, candidato do PRI à presidência federal fez campanha em Huautla. Pineda fez a segurança à visita de Madrazo. Também envolvido no evento de Huautla esteve o “deputado federal Elpidio Concha, principal instigador do espancamento de elementos da Frente Único Huautleco, da qual Serafín fazia parte.” Uma terceira imagem mostra Pineda numa camisa branca limpa. A legenda da fotografia diz que Pineda abraçou Madrazo em frente do anterior procurador, que por agora, apesar das tais fotografias, considera que não há bases para a acusação de homicídio.
[6] – PAN corresponde a Partido de Acção Nacional, o partido de direita do presidente Vicente Fox e Felipe Calderon. PRI quer dizer Partido Revolucionário Institucional, um partido de direita que governou o México durante quase oito décadas, até à vitória do presidencial do PAN, em 2000.
[7] – As citações das exigências de mudança da forma de governo do estado são do primeiro artigo da lista seguinte. Os outros pontos estão ligados directa ou indirectamente ao primeiro.
(1) “At a cusp in human affairs: the struggle for human dignity in Oaxaca, a southern state of Mexico” at
http://site.www.umb.edu/faculty/salzman_g/Strate/2006-07-07.htm ,
(2) “A few of many strands in the struggle for life with dignity: Palestine and Oaxaca, and now Lebanon, and . . .” at
http://site.www.umb.edu/faculty/salzman_g/Strate/2006-07-27.htm ,
(3) “Incipient Revolution in Oaxaca” at
http://site.www.umb.edu/faculty/salzman_g/Strate/2006-08-29.htm ,
(4) “In Oaxaca the Revolution isn’t just schlepping along, it’s in full-tilt” at
http://pwgd.org/gs/category/on-the-ground/ ,
(5) “Building a Oaxaca information and solidarity communication network” at
http://site.www.umb.edu/faculty/salzman_g/Strate/2006-09-09.htm ,
(6) “A general loss of fear, an e-mail to my entire “large” list” at
http://site.www.umb.edu/faculty/salzman_g/Strate/2006-09-11.htm and
(7) “Oaxaca City, a ‘dangerous destination’ – ‘in the grip of anarchy’” at
http://site.www.umb.edu/faculty/salzman_g/Strate/2006-09-17.htm .
[8] - The Rebellion of the Hanged, por Bruno Traven, Allison & Busby Ltd.,
[9] - Getting Free: A sketch of an association of democratic, autonomous neighborhoods and how to create it, por James Herod, em http://site.www.umb.edu/faculty/salzman_g/Strate/GetFre/index.htm .
[10] - México Profundo: Una Civilización Negada, por Guillermo Bonfil Batalla, Grijalbo, Mexico City, 1989. Traduzido para Inglês como México Profundo: Reclaiming a Civilization, por Philip A. Dennis, Univ of Texas Press, Austin, 1996. Não sei porque é que “negada” por substituído por “relclaiming [reclamando].
[11] – O Exército Popular Revolucionário (EPR), um grupo armado de guerrilha que apareceu na noite e manha de 28-29 de Agosto de 1996 nos estados de Oaxaca, Guerrero, Mexico, Chiapas, Tabasco e Guanajuato. Alguns oficiais foram assassinados.
Texto de publicado em http://site.www.umb.edu/faculty/salzman_g/Strate/2006-10-13.htm a 13 de Outubro de 2006 e traduzido por Alexandre Leite.
Comunicado emitido por organizações da sociedade civil de Oaxaca:
Acampamento pela dignidade e contra a repressão em Oaxaca
72 horas pela Paz
Desde que começou o conflito oaxaquenho, apesar das graves arbitrariedades a que foi sujeita a população, ainda não se tinha sentido tanto medo que o conflito se resolvesse com recurso ao uso da força indiscriminada e sem sentido, como agora.
O discurso do governo nos últimos dias deixa antever que há um novo reposicionamento, para obter o controlo do conflito e contê-lo, de modo a que as pessoas comecem a aceitar que não haverá destituição nem renúncia de Ulisses, e que deverá ser sob a actual estrutura de governo que se comece a desenvolver o que se tem chamado de uma Nova Reforma do Estado.
O governo instalou a primeira fase de uma operação que se baseia na intimidação da população para a persuadir a não continuar a luta pela justiça.
Desde a semana passada tem havido acções aéreas das forças armadas, mobilização dos integrantes da PFP [Polícia Federal Preventiva], do exército e da marinha, como preparativos para a intervenção em Oaxaca.
As organizações sociais abaixo-assinadas e integrantes da APPO [Assembleia Popular do Povo de Oaxaca], fazem um pedido urgente aos povos de Oaxaca, do México e do mundo para que venham instalar-se no “Acampamento pela dignidade e contra a repressão em Oaxaca”, para que apareçam e defendam o povo oaxaquenho e evitemos o derrame de sangue pela falta de visão dos nossos governantes.
Todos os que desejamos uma saída política do conflito, que só acontecerá com a saída de Ulisses, poderemos formar brigadas de paz e solidariedade para proteger e salvaguardar a integridade dos oaxaquenhos, de tal forma que consigamos persuadir os cruéis pensamentos de que o sangue dará um novo rumo ao conflito.
Não podemos permitir que a saída seja a repressão.
Participemos todos no acampamento da dignidade e contra a repressão, vestidos de branco como um claro sinal de que estamos num movimento pacífico e queremos uma saída política e digna. Levemos também um lenço de qualquer cor, com a variedade de cores a significar que neste movimento estamos dispostos a proteger as nossas companheiras e companheiros.
Os acampamentos serão uma forma de expressão cultural, ao contrário da rude e estéril acção policial e militar. Oaxaca é um estado com imensa diversidade cultural, emanada de tremendas lutas ancestrais, sempre caracterizadas pela dignidade do povo. Façamos uma demonstração de que a dignidade de Oaxaca é a dignidade da humanidade.
Os acampamentos serão instalados a partir de 4 de Outubro às 12 horas, na esplanada de Santo Domingo [na cidade de Oaxaca], e serão renovados a cada 72 horas. Os participantes devem trazer cobertores, tendas de campismo, mantas, sacos-cama, cordas, guarda-chuvas e alimentos. Para mais informações podem visitar a página www.oaxacalibre.org e confirmar a participação ou enviar as suas mensagens de apoio para comunicacion@educaoaxaca.org.
Por favor ajudem-nos a difundir este comunicado e participem com a sua presença.
GRITEMOS NÃO À REPRESSÃO!!!
SALVAGUARDEMOS O POVO OAXAQUENHO!!!
Organizações da Sociedade Civil de Oaxaca:
Alternativas para la Equidad y la Diversidad AC, Centro de Apoyo al Movimiento Popular Oaxaqueño CAMPO AC, Centro para los Derechos de la Mujer Ñääxuiin AC, Centro de Desarrollo Comunitario Centéotl AC, Centro de Encuentros y Diálogos Interculturales AC, Centro Regional de Derechos Humanos Bartolomé Carrasco AC, Centro de Derechos Indígenas Flor y Canto AC, Centro de Derechos Humanos Ñu'uji Kandí AC, Centro de Estudios de la Mujer y la Familia AC, Centrarte AC, Coalición de Maestros y Promotores Indígenas de Oaxaca CMPIO AC, Consorcio para el Diálogo Parlamentario y la Equidad AC (Oaxaca), Colectivo Nueva Babel AC, CODICE AC Comité de Vigilancia Ciudadana, Comité Cerezo Oaxaca, CHAMIXEZACUI AC, Enlace Comunicación y Capacitación Oaxaca AC, ECCOS AC, Foro Oaxaqueño de la Niñez, Grupo de Apoyo a la Educación de la Mujer GAEM, Grupo Mesófilo AC, Ixquixochitl AC, Grupo de Mujeres 8 de Marzo AC, Iniciativas para el Desarrollo de la Mujer Oaxaqueña IDEMO AC, Liga Mexicana por la Defensa de los Derechos Humanos LIMEDDH AC, La Ventana AC, Organización de Agricultores Biológicos ORAB AC, Ojo de Agua Comunicación SC, Observatorio por los Derechos Humanos y la Democracia, PAIR A.C. Promotora de Servicios para el Desarrollo PRODER SC, PROCAO AC, Pueblo Jaguar AC, Red Oaxaqueña de Derechos Humanos AC, Servicios para una Educación Alternativa EDUCA AC, Sinergia para el Desarrollo Integral Sustentable AC, Tequio Jurídico AC, Universidad de la Tierra en Oaxaca AC, Unión de Comunidades Indígenas de la Zona Norte del Istmo UCIZONI AC, Unión de Organizaciones de la Sierra Juárez de Oaxaca
Vejam este vídeo editado pelo jornal mexicano "La Jornada" que noticia o início do acampamento:
http://www.jornada.unam.mx:8080/ultimas/estatico/campamento-por-la-dignidad-y-contra-la-represion/
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Civilizado (adjectivo): culto, educado, refinado, instruído, cortês, elegante, sofisticado, urbano.
Civilizar (verbo): instruir, educar, cultivar, melhorar, fazer avançar, desenvolver, refinar.
Se o velhinho Dante Alighieri ainda estivesse cá hoje, tenho a certeza que teria dificuldade em encontrar palavras para descrever os males infligidos pelas chamadas nações civilizadas sobre os indefesos do planeta, presumindo que ele estivesse totalmente informado sobre o que se está a passar.
Eu sei que não devia estar surpreendido, mas no entanto estou. Surpreendido, em primeiro lugar, por viver numa cultura bárbara que se conseguiu mascarar de civilizada, e em segundo lugar, que tenha conseguido persuadir o mundo de que possui credenciais de civilização acima de tudo. Em terceiro lugar, surpreende-me que tenha sido capaz de manter a ilusão por uns longos quinhentos anos.
A maioria de nós associa a ideia de civilizado com a aprendizagem e com o respeito pela cultura, embora a raiz da palavra tenha a ver com o habitante de cidade.
“Mísseis atingiram tanques de armazenamento do complexo petroquímico [em Panchevo, nordeste de Belgrado], soltando no ar mais de 900 toneladas de monómero de cloreto de vinilo (MCV) altamente cancerígeno. Ao nascer do dia, nuvens de MCV deslocaram-se para a cidade, registando-se níveis 10600 vezes superiores ao limite de segurança humano, e as nuvens libertadas do complexo eram tão espessas que os residentes não conseguiam ver o sol. O MCV é perigoso já de si próprio, mas quando queimado liberta gás fosgéneo como sub-produto, uma substância tão tóxica que foi usada como gás venenoso na I Guerra Mundial. Fogos violentos libertaram cloro gasoso, outra substância que foi usada como gás venenoso durante a I Guerra Mundial, em conjunto com uma miríade de químicos perigosos, como nafta, etileno diclorídrico, ácido hidroclorídrico. Mais de 2000 toneladas de PVC dicloroetano altamente tóxico escorreram para o solo, obrigando a uma proibição do uso de vegetais cultivados nessa localidade. Uma chuva venenosa caiu sobre a região, e centenas de toneladas de petróleo e químicos infiltraram-se no solo e no rio Danúbio. Depois de um míssil ter falhado por pouco um tanque de amónio líquido, os trabalhadores entraram em pânico com o receio das consequências de uma explosão desse tanque e verteram o amónio líquido no Danúbio.” [1]
Como se não bastassem os fortes explosivos usados num bombardeamento “normal” de homens, mulheres e crianças, que “apenas” lhes tira a vida, temos aquilo a que eu chamo guerra ecocida, em que não são imediatamente visíveis os seus efeitos devastadores, que persistem durante gerações, em ecossistemas completos, efeitos estes de que apenas fazemos uma vaga ideia mas que só podem ser desastrosos para os nossos descendestes.
O leque de armas ecológicas usada pelas chamadas nações civilizadas é devastador o suficiente, mas como os alvos contêm eles próprios, muitas vezes, substâncias tóxicas e carcinogéneas, os efeitos das armas ecológicas são multiplicados através dos químicos libertados para o ambiente.
É inconcebível que quem planeia a guerra não tenha noção das consequências de alvejar complexos industriais modernos, cujos conteúdos, quando libertados, tornam o ambiente praticamente inabitável, por vezes durante gerações. Quando acontecem acidentes em instalações semelhantes de países ocidentais, tocam todas as sirenes, planos de contingência são activados, comunidades inteiras são evacuadas, estabelecem-se zonas de exclusão, entram em acção equipas de limpeza com as mais recentes técnicas para minimizar o dano ambiental.
Não é bem assim para os desafortunados habitantes da Jugoslávia, do Iraque e do Líbano, onde alvejar locais de produção e armazenamento de electricidade e químicos, faz parte integrante de uma política de terror deliberada, pois não apenas tem impacto nas pessoas que vivem e trabalham na zona, mas também coloca em perigo toda a população, através da destruição dos sistemas de tratamento e distribuição de água, da falta de electricidade em hospitais. De facto, todo o mecanismo da sociedade moderna entra em paragem, como consequência.
Igualmente devastador é o quase total silêncio dos media ocidentais, que consistente e deliberadamente têm ocultado informação ao público sobre os terríveis efeitos destas armas aterradoras em literalmente milhões de pessoas. ‘Fire and forget’ [expressão usada referindo-se aos mísseis auto-guiados que, depois de serem lançados, não necessitam de mais nenhum controlo até atingirem os alvos, e que significa ‘dispara e esquece’] toma agora um sentido completamente novo.
O uso destas armas em alvos industriais constitui um crime de guerra de dimensões absolutamente devastadoras que é crível que as nossas populações domésticas, se soubessem realmente a escala e o impacto destas armas de destruição em massa, reagiriam com horror e repulsa por tal destruição estar a ser cometida não apenas em seu nome, mas por sociedades que se intitulam civilizadas. Não admira que os grandes meios de comunicação nos escondam a realidade.
“O tempo de semi-vida do urânio empobrecido é de 4,5 mil milhões de anos, assegurando a permanente contaminação das áreas afectadas. Para terem uma ideia do que isto significa, tenham em consideração que o Sistema Solar é apenas uma bocadinho mais antigo… As armas com urânio empobrecido têm ainda o benefício lateral de serem um meio eficaz de se livrarem de lixo nuclear. Por altura da guerra da NATO [na Jugoslávia], os EUA tinham, em armazém, perto de quinhentas mil toneladas de lixo da produção de armas nucleares, e o Pentágono fornecia o material gratuitamente aos fabricantes de armamento… Uma única partícula de urânio empobrecido alojado nos pulmões é equivalente a uma radiografia ao tórax a cada hora, para o resto da vida.” [2]
Os media ocidentais, usando falsos argumentos da NATO de que o urânio empobrecido não provocou aumento de radiação, baseando-se na leitura de contadores geiger, que de facto não medem a radiação alfa provocada pelo urânio empobrecido, foram capazes de minimizar as acusações de que o urânio empobrecido é perigoso para a vida.
Muito se tem falado sobre o uso de bombas de fragmentação mas uma versão ainda mais mortal são as bombas de grafite usadas contra as estações transformadoras de electricidade, pensadas para aniquilar o fornecimento de electricidade.
“São pequenos contentores cheios de pequenas espirais, envolvidas por silicone. Estes pedaços de silicone são cobertos por alumínio, para permitirem a condução de electricidade… Quando estas bombas de fragmentação explodem em cima de uma central de transformação, cria-se uma espécie de rede que cai sobre essa central. O efeito é o mesmo que mandar grandes quantidades de água sobre essas instalações de distribuição. Isso causa curtos circuitos, etc., e todas estas instalações ficam inoperacionais. Mas muito deste material espalha-se numa nuvem de pequenas partículas de silicone. A lã-de-vidro também é feita de silicone. A lã-de-vidro foi proibida há vinte anos. É muito carcinogénica. Estou a referir-me às pessoas que vivem nas áreas onde essas bombas foram largadas. Um fumo denso esteve sobre as suas cabeças durante horas. As pessoas estiveram a inalar essas partículas de silicone.”[3]
Os humanos são mesmo engenhosos quando toca a descobrir métodos de se matarem uns aos outros. O facto de muitos milhões de pessoas altamente especializadas estarem empenhadas em inventar estes horrendos métodos de assassinato, devia fazer-nos revoltar contra os nossos governos por cometerem tais actos maléficos inqualificáveis contra os nossos companheiros humanos, e tudo para atingir o lucro privado.
Tal é o grau de alienação atingido, não apenas porque os cientistas e engenheiros de escritórios distantes estão totalmente desligados dos efeitos da sua ingenuidade, mas porque todos nós estamos numa cultura que tem sido erradamente educada, durante gerações, para aceitar a ideia de que ocupamos um nível superior na “árvore da evolução”, tão venenosa é a nossa concepção de “civilização”.
Quanto tempo mais podemos continuar a esquivar a nossa cumplicidade tácita no assassínio em massa, em virtude de pensarmos que temos alguma licença divina, de um Deus que pode falar de misericórdia e compaixão, e no mesmo fôlego condenar o uso do terror como meio de espalhar a “civilização”, ao estilo Ocidental?
Em última análise, as verdadeiras razões, escondidas dos olhos do público, são económicas. A Jugoslávia, o último bastião de poder social na Europa Ocidental, teve a sua economia interna reduzida a cascalho, pois sob a capa da destruição de alvos “militares”, todas as fábricas e armazéns significativos, todas as infra-estruturas eléctricas, de água, de tratamento de esgotos, de comunicações e transporte, foram bombardeadas, bastas vezes, de forma repetida, independentemente das consequências. E não se iludam, os planos da NATO tornaram claro que a economia jugoslava estava destinada a ser vendida ao capital ocidental.
“O Pacto de Estabilidade para e Sudeste Europeu, apoiado pelo Ocidente, ordena a ampla privatização e o investimento ocidental… O Fórum da Nova Sérvia, fundado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros Britânico… levou profissionais e académicos sérvios à Hungria regularmente, para discussão com “especialistas” britânicos e da Europa Central… O Fórum advogou a “reintegração” da Jugoslávia na família europeia,” um eufemismo que significa o desmantelamento da economia orientada socialmente, e a implementação de uma campanha de privatização em benefício das corporações ocidentais.” [4]
Na realidade, “civilização” e na verdade uma palavra-código para capitalismo, de estilo ocidental, que justifica o uso de exterminação em massa e terror em qualquer país que resista às suas exigências.
Notas
1. George Monbiot, “Consigning Their Future to Death,” The Guardian (
Tom Walker, “Poison Cloud Engulfs Belgrade,” The Times (
Mark Fineman, “Yugoslav City Battling Toxic Enemies”, Los Angeles Times, 6 de Julho de 1999.
2. Scott Peterson, “Depleted Uranium Bullets Leave Trail in
“Use of Depleted Uranium (DU) Weapons by NATO Forces in
3. Interview with Dushan Vasiljevich by delegation,
4. “Britain Trains New Elite for Post-Milosevic Era,” The Independent (
Todas as citações e referências foram retiradas do livro Strange Liberators – Militarism, Mayhem and the Pursuit of Profit de Gregory Elich. Llumina Press, 2006. (amazon.co.uk, amazon.com)
Texto publicado por William Bowles, a 29 de Setembro de 2006, que pode ser visto em http://williambowles.info/ini/2006/0906/ini-0453.html, e traduzido por Alexandre Leite.
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