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Civilizado (adjectivo): culto, educado, refinado, instruído, cortês, elegante, sofisticado, urbano.
Civilizar (verbo): instruir, educar, cultivar, melhorar, fazer avançar, desenvolver, refinar.
Se o velhinho Dante Alighieri ainda estivesse cá hoje, tenho a certeza que teria dificuldade em encontrar palavras para descrever os males infligidos pelas chamadas nações civilizadas sobre os indefesos do planeta, presumindo que ele estivesse totalmente informado sobre o que se está a passar.
Eu sei que não devia estar surpreendido, mas no entanto estou. Surpreendido, em primeiro lugar, por viver numa cultura bárbara que se conseguiu mascarar de civilizada, e em segundo lugar, que tenha conseguido persuadir o mundo de que possui credenciais de civilização acima de tudo. Em terceiro lugar, surpreende-me que tenha sido capaz de manter a ilusão por uns longos quinhentos anos.
A maioria de nós associa a ideia de civilizado com a aprendizagem e com o respeito pela cultura, embora a raiz da palavra tenha a ver com o habitante de cidade.
“Mísseis atingiram tanques de armazenamento do complexo petroquímico [em Panchevo, nordeste de Belgrado], soltando no ar mais de 900 toneladas de monómero de cloreto de vinilo (MCV) altamente cancerígeno. Ao nascer do dia, nuvens de MCV deslocaram-se para a cidade, registando-se níveis 10600 vezes superiores ao limite de segurança humano, e as nuvens libertadas do complexo eram tão espessas que os residentes não conseguiam ver o sol. O MCV é perigoso já de si próprio, mas quando queimado liberta gás fosgéneo como sub-produto, uma substância tão tóxica que foi usada como gás venenoso na I Guerra Mundial. Fogos violentos libertaram cloro gasoso, outra substância que foi usada como gás venenoso durante a I Guerra Mundial, em conjunto com uma miríade de químicos perigosos, como nafta, etileno diclorídrico, ácido hidroclorídrico. Mais de 2000 toneladas de PVC dicloroetano altamente tóxico escorreram para o solo, obrigando a uma proibição do uso de vegetais cultivados nessa localidade. Uma chuva venenosa caiu sobre a região, e centenas de toneladas de petróleo e químicos infiltraram-se no solo e no rio Danúbio. Depois de um míssil ter falhado por pouco um tanque de amónio líquido, os trabalhadores entraram em pânico com o receio das consequências de uma explosão desse tanque e verteram o amónio líquido no Danúbio.” [1]
Como se não bastassem os fortes explosivos usados num bombardeamento “normal” de homens, mulheres e crianças, que “apenas” lhes tira a vida, temos aquilo a que eu chamo guerra ecocida, em que não são imediatamente visíveis os seus efeitos devastadores, que persistem durante gerações, em ecossistemas completos, efeitos estes de que apenas fazemos uma vaga ideia mas que só podem ser desastrosos para os nossos descendestes.
O leque de armas ecológicas usada pelas chamadas nações civilizadas é devastador o suficiente, mas como os alvos contêm eles próprios, muitas vezes, substâncias tóxicas e carcinogéneas, os efeitos das armas ecológicas são multiplicados através dos químicos libertados para o ambiente.
É inconcebível que quem planeia a guerra não tenha noção das consequências de alvejar complexos industriais modernos, cujos conteúdos, quando libertados, tornam o ambiente praticamente inabitável, por vezes durante gerações. Quando acontecem acidentes em instalações semelhantes de países ocidentais, tocam todas as sirenes, planos de contingência são activados, comunidades inteiras são evacuadas, estabelecem-se zonas de exclusão, entram em acção equipas de limpeza com as mais recentes técnicas para minimizar o dano ambiental.
Não é bem assim para os desafortunados habitantes da Jugoslávia, do Iraque e do Líbano, onde alvejar locais de produção e armazenamento de electricidade e químicos, faz parte integrante de uma política de terror deliberada, pois não apenas tem impacto nas pessoas que vivem e trabalham na zona, mas também coloca em perigo toda a população, através da destruição dos sistemas de tratamento e distribuição de água, da falta de electricidade em hospitais. De facto, todo o mecanismo da sociedade moderna entra em paragem, como consequência.
Igualmente devastador é o quase total silêncio dos media ocidentais, que consistente e deliberadamente têm ocultado informação ao público sobre os terríveis efeitos destas armas aterradoras em literalmente milhões de pessoas. ‘Fire and forget’ [expressão usada referindo-se aos mísseis auto-guiados que, depois de serem lançados, não necessitam de mais nenhum controlo até atingirem os alvos, e que significa ‘dispara e esquece’] toma agora um sentido completamente novo.
O uso destas armas em alvos industriais constitui um crime de guerra de dimensões absolutamente devastadoras que é crível que as nossas populações domésticas, se soubessem realmente a escala e o impacto destas armas de destruição em massa, reagiriam com horror e repulsa por tal destruição estar a ser cometida não apenas em seu nome, mas por sociedades que se intitulam civilizadas. Não admira que os grandes meios de comunicação nos escondam a realidade.
“O tempo de semi-vida do urânio empobrecido é de 4,5 mil milhões de anos, assegurando a permanente contaminação das áreas afectadas. Para terem uma ideia do que isto significa, tenham em consideração que o Sistema Solar é apenas uma bocadinho mais antigo… As armas com urânio empobrecido têm ainda o benefício lateral de serem um meio eficaz de se livrarem de lixo nuclear. Por altura da guerra da NATO [na Jugoslávia], os EUA tinham, em armazém, perto de quinhentas mil toneladas de lixo da produção de armas nucleares, e o Pentágono fornecia o material gratuitamente aos fabricantes de armamento… Uma única partícula de urânio empobrecido alojado nos pulmões é equivalente a uma radiografia ao tórax a cada hora, para o resto da vida.” [2]
Os media ocidentais, usando falsos argumentos da NATO de que o urânio empobrecido não provocou aumento de radiação, baseando-se na leitura de contadores geiger, que de facto não medem a radiação alfa provocada pelo urânio empobrecido, foram capazes de minimizar as acusações de que o urânio empobrecido é perigoso para a vida.
Muito se tem falado sobre o uso de bombas de fragmentação mas uma versão ainda mais mortal são as bombas de grafite usadas contra as estações transformadoras de electricidade, pensadas para aniquilar o fornecimento de electricidade.
“São pequenos contentores cheios de pequenas espirais, envolvidas por silicone. Estes pedaços de silicone são cobertos por alumínio, para permitirem a condução de electricidade… Quando estas bombas de fragmentação explodem em cima de uma central de transformação, cria-se uma espécie de rede que cai sobre essa central. O efeito é o mesmo que mandar grandes quantidades de água sobre essas instalações de distribuição. Isso causa curtos circuitos, etc., e todas estas instalações ficam inoperacionais. Mas muito deste material espalha-se numa nuvem de pequenas partículas de silicone. A lã-de-vidro também é feita de silicone. A lã-de-vidro foi proibida há vinte anos. É muito carcinogénica. Estou a referir-me às pessoas que vivem nas áreas onde essas bombas foram largadas. Um fumo denso esteve sobre as suas cabeças durante horas. As pessoas estiveram a inalar essas partículas de silicone.”[3]
Os humanos são mesmo engenhosos quando toca a descobrir métodos de se matarem uns aos outros. O facto de muitos milhões de pessoas altamente especializadas estarem empenhadas em inventar estes horrendos métodos de assassinato, devia fazer-nos revoltar contra os nossos governos por cometerem tais actos maléficos inqualificáveis contra os nossos companheiros humanos, e tudo para atingir o lucro privado.
Tal é o grau de alienação atingido, não apenas porque os cientistas e engenheiros de escritórios distantes estão totalmente desligados dos efeitos da sua ingenuidade, mas porque todos nós estamos numa cultura que tem sido erradamente educada, durante gerações, para aceitar a ideia de que ocupamos um nível superior na “árvore da evolução”, tão venenosa é a nossa concepção de “civilização”.
Quanto tempo mais podemos continuar a esquivar a nossa cumplicidade tácita no assassínio em massa, em virtude de pensarmos que temos alguma licença divina, de um Deus que pode falar de misericórdia e compaixão, e no mesmo fôlego condenar o uso do terror como meio de espalhar a “civilização”, ao estilo Ocidental?
Em última análise, as verdadeiras razões, escondidas dos olhos do público, são económicas. A Jugoslávia, o último bastião de poder social na Europa Ocidental, teve a sua economia interna reduzida a cascalho, pois sob a capa da destruição de alvos “militares”, todas as fábricas e armazéns significativos, todas as infra-estruturas eléctricas, de água, de tratamento de esgotos, de comunicações e transporte, foram bombardeadas, bastas vezes, de forma repetida, independentemente das consequências. E não se iludam, os planos da NATO tornaram claro que a economia jugoslava estava destinada a ser vendida ao capital ocidental.
“O Pacto de Estabilidade para e Sudeste Europeu, apoiado pelo Ocidente, ordena a ampla privatização e o investimento ocidental… O Fórum da Nova Sérvia, fundado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros Britânico… levou profissionais e académicos sérvios à Hungria regularmente, para discussão com “especialistas” britânicos e da Europa Central… O Fórum advogou a “reintegração” da Jugoslávia na família europeia,” um eufemismo que significa o desmantelamento da economia orientada socialmente, e a implementação de uma campanha de privatização em benefício das corporações ocidentais.” [4]
Na realidade, “civilização” e na verdade uma palavra-código para capitalismo, de estilo ocidental, que justifica o uso de exterminação em massa e terror em qualquer país que resista às suas exigências.
Notas
1. George Monbiot, “Consigning Their Future to Death,” The Guardian (
Tom Walker, “Poison Cloud Engulfs Belgrade,” The Times (
Mark Fineman, “Yugoslav City Battling Toxic Enemies”, Los Angeles Times, 6 de Julho de 1999.
2. Scott Peterson, “Depleted Uranium Bullets Leave Trail in
“Use of Depleted Uranium (DU) Weapons by NATO Forces in
3. Interview with Dushan Vasiljevich by delegation,
4. “Britain Trains New Elite for Post-Milosevic Era,” The Independent (
Todas as citações e referências foram retiradas do livro Strange Liberators – Militarism, Mayhem and the Pursuit of Profit de Gregory Elich. Llumina Press, 2006. (amazon.co.uk, amazon.com)
Texto publicado por William Bowles, a 29 de Setembro de 2006, que pode ser visto em http://williambowles.info/ini/2006/0906/ini-0453.html, e traduzido por Alexandre Leite.
Depois de terminado o vídeo, os nossos anfitriões, que eram anfitriões educados, modestos e maravilhosos, perguntaram-nos o que pensávamos sobre o vídeo, o que me colocou numa situação extremamente desconfortável porque, como peça de propaganda dirigida a uma audiência ocidental, era uma nódoa. No fundo, cenas intermináveis de enormes manifestações, fábricas, campos, amplas avenidas e citações de Kim il Sung, dificilmente iriam persuadir uma audiência americana, que cresceu com uma dieta de imagens lustrosas e sedutoras da superioridade do modo de vida ocidental, de que a Coreia do Norte era a melhor coisa que apareceu desde a invenção do pão fatiado.
Tentar explicar isto aos nossos anfitriões não foi fácil e, como era de esperar, não consegui, ou eles foram tão educados que não me disseram. O que isto revelou foi a imensa distância entre as nossas culturas. Os nossos anfitriões coreanos sabiam tanto do modo de vida americano como nós tínhamos do deles, independentemente da nossa simpatia por eles.
Era óbvio que eles estavam genuinamente orgulhosos das suas conquistas, que tinham sido conseguidas com muito custo, com a perda de 4 milhões de pessoas durante a Guerra Coreana e a destruição total do seu país pelas mãos “acção policial” liderada pelos EUA, como era eufemisticamente chamada.
A destruição norte-americana da Coreia é apenas um entre tantos crimes de guerra de cometidos pelo imperialismo, dos quais temos sido completamente mantidos na ignorância. Tivéssemos nós sido devidamente informados da horrenda escala de destruição, tanto humana como material, e penso que os acontecimentos poderiam ter terminado de forma diferente.
É normalmente aceite, pelo menos na Esquerda, que sem um esforço de propaganda em massa, persuadindo a maioria da população a apoiar as acções imperialistas, estas seriam, muito provavelmente, impossíveis. Se isto é verdade ou não, não é fácil de provar, pois não se tem em conta até que ponto fomos seduzidos pelos nossos próprios interesses em apoiar o projecto imperialista.
Mas se há uma coisa em que a Esquerda é boa, é por os pontos nos “ii” e o tracinho no “t”, simplesmente porque nós temos de fazer a nossa pesquisa de forma a tentar provar o nosso caso, já que a imprensa corporativa irá atacar o mínimo erro para nos deitar abaixo e provar que estamos enganados.
A História é, para nós, uma arma poderosa com a qual se investiga e explica o presente; como as coisas chegaram ao ponto em que estão. No entanto, isto não é algo fácil de conseguir. Requer um imenso tempo e esforço e depois tem de ser destilado em algo de fácil digestão.
Num artigo anterior, mencionei um livro, Strange Liberators [Estranhos Libertadores] de Gregory Elich, que é uma análise bastante detalhada da política externa dos EUA e especialmente sobre como as suas palavras vão completamente ao contrário das suas acções.
O livro é grande (400 páginas), por isso, em vez de fazer uma análise completa à obra, eu pensei que fazia mais sentido dividir em partes, a primeira das quais será sobre a Coreia do Norte.
Strange Liberators debruça-se durante três capítulos sobre a forma como os EUA lidaram com a desafortunada Coreia do Norte e ao fazer isso rebenta com o mito deste membro do chamado “eixo do mal”.
Independentemente do que vocês acham da versão do socialismo da Coreia do Norte, ou mesmo do seu historial em direitos humanos (dependendo do que se entende por direitos humanos), os registos são claros no que toca à forma como os EUA humilharam, ameaçaram e literalmente deixaram à fome, a população da Coreia do Norte, até capitularem às principais exigências norte-americanas.
O livro de Elich documenta este processo de forma minuciosa, repleto de páginas com referências. O problema para nós, claro está, é que não temos acesso aos meios de comunicação em massa de forma a podermos explicar a realidade da situação, nem é fácil reduzir, como faz a imprensa corporativa, acções ou intenções a frases com impacto que possam ser digeridas por populações alimentadas literalmente há gerações com uma dieta de papa política.
Então como é que se consegue transmitir a natureza de um estado predador e imperialista, a todos os que ainda não estão convertidos, sem cair no abuso da estatística nem em versões de frases chave da esquerda?
Elich consegue-o com uma boa dose de sarcasmo impregnado de ironia, e depois jorra os factos por cima, sendo uma boa fonte em que podemos confiar, por exemplo:
“Os EUA, guiados pela preocupação da paz e estabilidade na região, tentaram pacientemente encorajar uma relutante Coreia do Norte a negociar. Esta é a imagem popular, tão entranhada como inexacta.” (pág. 63)
Mas ter acesso aos factos é quase como uma escavação arqueológica em que poucos têm habilidade, compreensão ou paciência para a empreender. Felizmente, temos pessoas como Elich, que fazem a escavação por nós.
Os capítulos de Elich sobre a Coreia do Norte focam especificamente a alegada ameaça nuclear da Coreia do Norte aos Estados Unidos, uma acusação que seria risível se não fosse o facto de, usando a “ameaça nuclear” como pretexto, os Estados Unidos terem estado extremamente perto, em inúmeras ocasiões, de desencadearem uma guerra nuclear com a península coreana!
Esta simples realidade bastaria, tenho a certeza, para persuadir muitos mais milhões de pessoas sobre as reais intenções dos EUA, se fosse mais conhecida. Mas claro, os grandes meios de comunicação têm subtilmente escondido os factos ao público.
Em primeiro lugar, os EUA apanharam uma boa porrada durante a Guerra da Coreia e tal como a Guerra do Vietname, não ia ser perdoada nem esquecida, e desde aí, a mera existência da RDPC (República Democrática Popular da Coreia) é uma afronta ao capital norte-americano. Foram feitos todos os esforços, excepto a guerra, para apagar a RDPC da face do planeta.
Nos anos 1990, com uma mudança no governo da Coreia do Sul, foram dados passos em direcção a uma certa aproximação entre o Norte e o Sul, o que do ponto de vista dos EUA era algo definitivamente inaceitável.
Foram feitos todos os esforços para sabotar o restabelecimento de relações entre a Coreia do Norte e a do Sul, como se pode ver pelo retomar do jogo de guerra “Team Spirit” em 1993, suspenso por George H.W. Bush e reiniciado por Clinton (lá se vai a ideia daqueles que continuam a pensar que uma administração dos Democratas seria uma mudança para melhor!).
O “Team Spirit” envolvia bombistas, mísseis cruzeiro e forças navais, e só para chatear ainda mais os norte-coreanos, Clinton anunciou que alguns dos mísseis nucleares que tinham estado apontados para a antiga União Soviética, seriam redireccionados para a Coreia do Norte.
Previsivelmente, os norte-coreanos anunciaram que então iriam abandonar o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNPAN), mas no seguimento de conversações com os EUA, a RDPC afirmou que continuaria como signatária.
Mas imediatamente, a AIEA (Agência Internacional de Energia Atómica) exigiu que a RDPC abrisse todas as instalações nucleares a inspecções, “algo que a agência nunca tinha exigido a nenhuma nação … um pedido que foi instigado por oficiais dos EUA … As relações aqueceram mais quando a Coreia do Norte descobriu que os inspectores da AIEA estava a passar informações secretas a oficiais norte-americanos.” (pág. 63)
A propaganda dos EUA reforçou-se com o aviso de Clinton de que “à Coreia do Norte, não se pode permitir que desenvolva a bomba nuclear.” (pág. 64). Não foi apresentada nenhuma prova para suportar esta alegação. Como toda a propaganda Goebleliana, foi aceite em virtude da contínua repetição pela administração Clinton e pelos seus papagaios dos grandes meios de comunicação.
Decorriam os preparativos para a guerra.
“Nós preparamos um plano detalhado para atacar as instalações [nucleares] de Yongbyon com bombas de precisão. Estávamos altamente confiantes que poderiam ser destruídas sem causar uma reacção nuclear que libertasse radioactividade para a atmosfera … anunciou o Secretário de Estado Adjunto da Defesa, Ashton Carter … Anos mais tarde, o governo sul-coreano efectuou uma simulação de um ataque a Yongbyon e conclui que se todos os edifícios do complexo fossem atingidos, um quarto da população, num raio de 50km, morreria num espaço de horas.” (pág. 64)
Algo pior estava a ser preparado. O pensamento no Pentágono era, “já que estamos nisto, porque não apanhá-los a todos?” (pág. 65). Felizmente, o presidente da Coreia do Sul, Kim Young-Sam, não foi na conversa dos loucos dos EUA.
“Kim avisou o Embaixador norte-americano James Laney que outra guerra transformaria toda a Coreia num banho de sangue.” (págs. 64-65)
No seguimento de um conversa telefónica de 32 minutos, entre Clinton e Sam, os EUA concordaram relutantemente em não “conquistar” a Coreia do Norte. Mas nos doze anos seguintes, os EUA levaram a cabo uma guerra com a Coreia do Norte, por outros meios, incluindo esfomear a população até à submissão, o que levou directa ou indirectamente, à morte de talvez um milhão de pessoas, muitas delas crianças.
Até aos dias de hoje, seguiram-se outras ameaças de ataques militares, incluindo o uso de armas nucleares, ameaças que Elich assinala na sua total realidade horrorosa e de sangue frio.
Por esta altura, já deve ser óbvio que o Iraque, e agora o Irão, são meramente a continuação da política que os EUA têm vindo a fazer nos últimos cinquenta anos; “Se não fizeres como eu digo, rebentamos contigo. Vamos esfomear-te e isolar-te, e forçar os nossos aliados a apoiarem-nos.”
É preciso que perguntem a vocês próprios que possíveis razões farão de um país pequeno, atacado pela pobreza, que nunca atacou ninguém, uma ameaça tão grande aos EUA e que justifique assassinatos, mentiras, subterfúgios e sabotagem.
Os EUA e o seu grande parceiro, o Reino Unido, com a cumplicidade dos media corporativos detidos pelo estado fizeram com que se acreditasse que a Coreia do Norte, se por acaso tivesse os meios (que obviamente não tem), arriscaria a destruição total, invadindo os Estados Unidos da América. Que ideia ridícula!
A resposta, como acertadamente assinala Elich, é simples: lucro. E aqui, Elich vai de certa forma contra a ortodoxia prevalecente, afirmando categoricamente que a invasão do Iraque e do Afeganistão, longe de serem falhanços, são um estrondoso sucesso, quando medidas em dólares.
“Os líderes ocidentais podem enganar-se na facilidade com que serão capazes de impor a sua vontade no Iraque e tomar o controlo da sua economia, mas não há nada de irracional na decisão de ir para a guerra. As baixas têm sido suportadas quase só pelos cidadãos vulgares do Iraque e pelos soldados ocupantes que se ferem e morrem. As despesas são pagas através dos impostos, saídos principalmente dos bolsos dos trabalhadores, enquanto o sector das corporações é que recolhe os ganhos. Os ganhos têm sido reais para essa classe. O facto de muitos dos objectivos da administração Bush não terem sido cumpridos, não exclui o facto de alguns terem sido alcançados. Mesmo ganhos parciais são valorizados, quando o custo é suportado por outros. Que o Iraque, virado do avesso pela guerra, seja um lugar perigoso e agonizante, não preocupa os donos das corporações que nunca lá põem os pés e para quem o Iraque representa um investimento lucrativo.” (pág. 22)
É a mesma lógica fria, que impulsionou a política norte-americana relativa à Coreia do Norte, durante mais de cinquenta anos. Dito de forma simples, desafiem o capitalismo dos EUA e serão destruídos.
Strange Liberators – Militarism, Mayhem and the Pursuit of Profit [Estranhos Libertadores – Militarismo, Desordem e a Busca do Lucro] de Gregory Elich. Llumina Press, 2006. (amazon.co.uk, amazon.com)
Texto publicado por William Bowles em http://williambowles.info/ini/2006/0906/ini-0451.html a 23 de Setembro de 2006, e traduzido por Alexandre Leite.
Análise ao livro: “Democracy and Revolution – Latin America and Socialism Today [Democracia e Revolução – América Latina e o Socialismo Actual]”, de D.L. Raby
“Só um louco poderia pensar que a solução para os problemas do mundo está no capitalismo” – Hugo Chavez Frias
Gosto mesmo deste livro; em primeiro lugar, a sua linguagem despretensiosa torna-o acessível, ao contrário da usual diarreia que atormenta os escritos académicos, especialmente na “esquerda”, com toda a sua conversa do paradigmático para aqui e da dialéctica para ali.
Mas mais ainda, este é um livro importante porque se atreve a ir onde poucos na “esquerda” se aventuram, hoje em dia; o leque de possibilidades para o Socialismo. Mais ainda, baseia-se em análises bastante credíveis de duas revoluções bem sucedidas, Cuba e Venezuela, e de três que falharam, mas das quais se podem tirar bastantes lições sobre o falhanço, Chile, Nicarágua e Portugal.
“O entendimento universal de que a democracia é o único regime válido – aceite inclusive pela maior parte dos partidos ex-comunistas – esconde a questão de saber o que realmente significa a democracia, e se o liberalismo Ocidental é a única forma válida de democracia e também se a mudança revolucionária é possível por meios democráticos. Estas são também questões centrais que terão de ser colocadas, na procura de uma alternativa política” (pág. 5).
Mas mesmo aqueles casos que esqueceram os assuntos centrais da exploração, têm uma coisa em comum, o papel assumido pelas raízes democráticas e acima de tudo, pela participação directa no processo de tomada de decisões, ultrapassando quase todos os partidos políticos tradicionais de esquerda.
Mas antes de chegar à apresentação propriamente dita da opinião de Raby, vale a pena examinar o que ele tem a dizer sobre o falhanço da esquerda em entender as lições do passado, e ao fazer isso, revela porque falharam os vários socialismos do séc. XX.
“[Apesar de] onde os partidos comunistas ainda terem uma força residual e aderirem a uma linha tradicional anti-sistema… a quase total ausência de renovação teórica mostra que não conseguiram enfrentar as lições do colapso da União Soviética e não têm nada de inovador a oferecer. Com algumas excepções, isto também se aplica à maioria das derivações do comunismo – as muitas variedades de trotskistas e marxistas-leninistas – que ainda são devotos de um partido com centralismo democrático, do monopólio ideológico da dialéctica e do materialismo histórico e de um modelo centralizado de estado socialista” (pág. 3).
Então o que faz de Cuba e da Venezuela um caso diferente? A resposta está nas suas histórias, pois os países da América Latina têm, não apenas
“…uma maior experiência de governo colonial do que qualquer outro, o ‘pátio das traseiras’ do imperialismo dos EUA, têm um maior “caldo” cultural e étnico do que a América do Norte, e também têm uma história de intensa luta popular revolucionária que é menos contaminada por distorções políticas e ideológicas do que em qualquer outro continente… Só na América Latina parece florescer o impulso revolucionário, por isso, para além de Cuba e da Venezuela podemos encontrar os governos progressistas de Lula no Brasil, Kirchner na Argentina, a Frente Amplio no Uraguai e poderosos movimentos populares como os Pachakutic no Ecuador, Evo Morales e o MAS na Bolívia, as FARC e o ELN bem como resistência popular pacífica na Colômbia, o FLMN em El Salvador e no Mexico, os Zapatistas …’ (pág. 8)
Apesar de ser ainda muito cedo para celebrar a queda do imperialismo, Raby assinala o facto de que
“[os] movimentos progressistas e populares, na América Latina, continuam a mostrar vitalidade e criatividade sem paralelo, no actual mundo cínico, unipolar e terrorista.” (pág. 9)
Talvez possa ser argumentado que os acontecimentos na Venezuela e em Cuba não têm relação nenhuma connosco, aqui no chamado mundo desenvolvido, mas Raby argumenta, e eu penso que com razão, que de facto, o ponto central que assombrou as tentativas de construir o Socialismo foi o ponto da democracia (ou antes, a falta dela). Não a versão capitalista, apresso-me a acrescentar, mas a real democracia participativa, que constrói o edifício a partir de baixo.
Este ponto central da argumentação de Raby, pode ser melhor exemplificado com a seguinte citação
“Está intimamente ligado ao conceito de soberania popular, de que a soberania realmente reside nas pessoas como um todo e não em classes dominantes ou nalgum grupo hereditário ou numa instituição privilegiada. As pessoas, acima de tudo, são elas próprias actores políticos pela mobilização colectiva, não apenas pela recepção passiva das mensagens dos media ou pelo voto individualizado” (pág. 11)
Raby também assinala que na América Latina, revolução e democracia significam algo de diferente daquilo que significam na Europa e América do Norte, onde a palavra revolução está associada à “violência irracional e sectarismo dogmático” (pág. 12) e democracia é votar a cada cinco anos e pouco mais.
Na América Latina, “democracia” é
“popularmente associada a direitos colectivos e poder popular, e não apenas a instituições representativas e pluralismo liberal. O conceito também é indissolúvel dos direitos e culturas de grupos étnicos e sociais oprimidos, com fortalecimento dos indígenas, negros e mestiços” (pág. 12)
Para colocar isto num contexto, Raby usa o exemplo da Nicarágua e da Revolução Sandinista, que no final foi derrotada por uma combinação de factores, mas que foi importante porque
“… a Esquerda organizada foi totalmente irrelevante ao processo [de revolução], e apenas deu o seu apoio (no melhor dos casos, pois vários partidos de esquerda se juntaram à oposição reaccionária) quando a vitória já estava na mão. Mais uma vez, as pessoas reconheceram a liderança revolucionária muito antes dos políticos ou dos intelectuais. E novamente, a vitória foi conseguida por um movimento amplo, democrático e nacional, ideologicamente flexível mas unido na acção, com um líder individual carismático com um notável dom de oratória e capacidade de acção decisiva” (pág. 17)
Raby volta ao tema da importância de um líder carismático como absolutamente indispensável, ao aflorar a capacidade de Fidel e Hugo Chavez de se ligarem e, ainda mais importante, de ouvirem as pessoas, num diálogo contínuo.
Os discursos de horas, de Fidel, e o programa televisivo semanal de Chavez, “Alo Presidente”, longe de serem exortações de um superior, são efectuados numa linguagem de pessoa comum e são, na verdade, aquilo que se poderia descrever como “pergunta e resposta”, com a pergunta a vir das pessoas.
E aqui, Raby invalida a ideia comummente aceite de que tais líderes são “populistas”, o que está normalmente associado à noção de demagogia e à reacção, e ao fazer isso, redefine o significado da palavra (ele usa o termo “neo-populista”).
O outro mito que Raby efectivamente destrói é o do papel dos militares na conquista da mudança revolucionária, argumentando que
“Existe uma diferente tradição militar na América Latina, uma tradição de oficiais nacionalistas, democráticos e anti-imperialistas como Omar Torrijos no Panamá, Velasco Alvarado no Peru ou Francisco Caamãno Deno na República Dominicana. Na realidade, é uma tradição com profundas raízes, recuando ao tempo da República Socialista do Coronel Marmaduke Grove no Chile (1931), dos “tenentes” do Brasil nos anos 1920 e indo mesmo até aos libertadores do início do séc. XIX.” (pág.17)
E Raby dedica mesmo uma secção completa à revolução falhada de 1974 em Portugal, a chamada “Revolução dos Cravos”, levada a cabo pelo progressista MFA, realmente revolucionário, o Movimento das Forças Armadas. Este movimento advogava “uma estratégia económica anti-monopolista … e uma política social de defesa dos interesses da classe trabalhadora.” (pág. 214)
Raby também desafia o conceito de políticos profissionais, e vai ainda mais longe desafiando a própria ideia de um partido político hegemónico “a liderar as massas”. Não que os partidos políticos sejam irrelevantes, mas as experiências extensamente documentados no livro “Democracy and Revolution” indicam a razão de revoluções em Cuba e Venezuela terem tido sucesso enquanto outras falharam.
Os partidos políticos tornam-se perigosos quando deixam de ouvir e de responder às pessoas; quando acham que têm as repostas todas e caem no dogmatismo e na postura ideológica mono-dimensional, uma situação com a qual tenho a certeza que muitos de vós estão familiarizados.
Raby deixa claro que em todas estas situações, não foram os partidos Comunistas e Socialistas tradicionais que abriram o caminho (embora alguns tenham saltado para o comboio já em andamento) e, de facto, alguns opuseram-se mesmo às acções revolucionárias dos movimentos de base ampla.
Raby resume as experiências revolucionárias em Cuba, Nicarágua, Venezuela e Portugal, da forma que se segue:
“…tudo aponta na direcção de um movimento amplo, popular e democrático, com um líder forte, carismático, fora dos partidos, ideologicamente flexível e inspirado por uma cultura e tradições nacionais, bem como diferentes correntes de pensamento progressista internacional, como os componentes essenciais para o sucesso de uma revolução.” (pág. 19)
Relevantes para nós, no chamado mundo desenvolvido, são as observações de Raby sobre as nossas “democracias liberais” que ele vê, de forma correcta, a degenerarem e a conterem muitas das marcas próprias das anteriores ditaduras militares da América Latina!
“O crescimento do poder executivo, a castração do parlamento, a destruição da democracia no seio dos partidos e das liberdades civis, contribuíram poderosamente para a decepção dos eleitores nos mesmos países que gostam de se apresentar como modelos democráticos para o mundo, mas já nem se regem pelos seus próprios princípios liberais.” (pág. 28)
Há uma lição a reter aqui por nós, e uma que não está esquecida pelas pessoas dos países desenvolvidos que expressam uma vontade de serem reconhecidos, de pertencerem, de participarem, mesmo que esteja esquecida pela chamada Esquerda, excepto em oportunismos como o Respect Party [do Reino Unido] fazendo a corte ao voto muçulmano mas ignorando praticamente todos os outros.
E é aqui que as experiências de Cuba e da Venezuela são usadas com grande eficácia, para demonstrar como poderia ser parecido um “Socialismo do séc.XXI”.
Mas não me interpretem mal, Raby também não se mostra iludido sobre o pape do poder e a importância de um estado central forte
“Uma coisa é reconhecer que o poder do estado revolucionário perdeu variadas vezes as suas bases de democracia popular, e outra coisa é negar a importância de um estado poderoso e a possibilidade de construir uma estrutura de poder não capitalista, baseada na justiça social.” (pág. 57)
Sobre este assunto, Raby cita Atilio Boron de forma sucinta
“… o estado é precisamente onde as correlações de forças se condensam. Não é o único local, mas é de longe o mais importante. É o único a partir do qual, por exemplo, os vencedores podem transformar os seus interesses em leis e criar uma moldura normativa e institucional que garanta a estabilidade das suas conquistas.” – Atilio Boron (2005), em ‘Forum on John Holloway’, Capital and Class 85, Spring.
Raby continua
“É por isso que, apesar do facto do estado Soviético ter cessado há muito a expressão do poder popular, de forma significativa, os cuidados de saúde e a educação continuaram livres e universais, e o desemprego era praticamente nulo até ao colapso da URSS … Boron sustenta que foi a original conquista revolucionária do poder, 70 anos antes, que institucionalizou direitos fundamentais para as pessoas comuns, direitos que sobreviveram ao fim desse modelo revolucionário particular.” (pág. 58)
Marx e o Marxismo também não são abandonados por Raby. Em vez disso, ele volta a eles, citando Marx e Engels sobre a Comuna de Paris de 1871
“A classe trabalhadora não esperava milagres da Comuna. Não têm utopias pré-estabelecidas para introduzir par decret du people. Eles sabem que para conseguirem a sua própria emancipação, e conjuntamente com ela, essa superior forma para a qual a actual sociedade está irresistivelmente a inclinar-se, através dos seus agentes económicos, eles terão de passar por grandes lutas, por uma série de processos históricos, transformando as circunstâncias e os homens.” – Marx e Engels, 1968, 294-5.
Mais importante, Raby não tem ilusões sobre as actuais circunstâncias, pois ele diz que
“A lógica de tal processo revolucionário [como na Venezuela e Nicarágua] e de regimes populares que os precederam, irá apontar necessariamente numa direcção Socialista, apesar de nunca serem capazes de estabelecer um sistema Socialista estável pois isso seria uma contradição (agora mais do que nunca, num mundo globalizado). Em vez disso, estarão numa tensão permanente com o imperialismo e a sua sobrevivência depende da manutenção da mobilização popular e da participação democrática a todos os níveis.” (pág. 65)
Raby chama a isto
“estado revolucionário de poder popular, que pode ser o que o socialismo, como uma fase de transição, realmente é: não pode funcionar com um modo de produção auto-sustentado e distinto, que era a ilusão Estalinista, mas através da sua força democrática popular e militar, pode funcionar num lógica não capitalista ou anti-capitalista… Como estado revolucionário, pode negociar com o capital transnacional numa posição de relativa força, pode criar e proteger uma sociedade baseando-se, em larga medida, na justiça social, na democracia participativa e na soberania económica, mas não pode romper completamente com o sistema capitalista global até ao momento (ainda remoto) em que a revolução e o poder popular/Socialismo esteja espalhado por grande parte do mundo.” (pág. 65)
E é precisamente isso que quer a Venezuela quer Cuba (até agora) conseguiram fazer. No fundo, façam a pergunta de por que razão, apesar de nos dizerem que chegamos ao “fim da história” (isto é, da revolução), Cuba sobrevive e prospera, e o mais original e excitante acontecimento, a Revolução Bolivariana, está a acontecer neste momento?
O espaço e o tempo impossibilitam-me a exploração deste livro de uma forma mais profunda. Há muitos outros aspectos que gostara imenso de focar, sobre assuntos que eu penso serem de relevância directa para nós. Mas se este artigo vos espicaçar a atenção, comprem-no por favor, ou peçam à vossa biblioteca local (se ainda tiverem uma) para o adquirir. Eu acredito que este é um livro importante e oportuno que rompe muitos dos mitos sobre as possibilidades de uma transformação socialista e não apenas na América Latina.
‘Democracy and Revolution –
Artigo publicado por William Bowles a 8/9/2006 em http://williambowles.info/ini/2006/0906/ini-0448.html e traduzido por Alexandre Leite.
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