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“50 mortos na operação que ainda decorre; míssil atinge escola infantil
A ofensiva continuada das FOI [Forças de Ocupação Israelitas] no norte de Gaza, já deixou 45 (50 em toda a Faixa de Gaza) palestinianos mortos, no seu sexto dia de operação. Dos mortos, nove eram crianças, duas mulheres e um idoso. Perto de 190 ficaram feridos, incluindo 46 crianças e 45 mulheres. Um ataque aéreo das FOI atingiu as cercanias de uma escola e de um autocarro de um infantário. Para além disso, as FOI destruíram 64 casas, 11 das quais completamente, tomou outras 34 e demoliu cinco instituições públicas, duas lojas e cinco veículos. A situação humanitária em Beit Hanoun deteriorou-se devido à falta de bens alimentares, electricidade, água e medicação, bem como pelo estado danificado das infraestruturais da localidade. Às 7:05 da manhã de hoje, segunda-feira 6 de Novembro de 2006, as FOI dispararam um míssil que atingiu um grupo de crianças perto de uma escola em Beit Lahia, perto de Beit Hanoun.” — “Al Mezan”, 6 de Novembro de 2006
“Forças israelitas matam pessoal médico voluntário e bloqueiam acesso a hospitais em Gaza
A deteriorada situação humanitária na Faixa de Gaza, particularmente no Norte de Gaza, resultante da continuada operação militar israelita que já vai no quinto dia, exige uma intervenção imediata por parte da comunidade internacional, de forma a assegurar a protecção da população civil e a colocar um fim às agressões de Israel a civis e equipas médicas. As forças de ocupação israelitas atacaram deliberadamente civis desarmados bem como ambulâncias do Crescente Vermelho Palestiniano e equipas médicas. A 3 de Novembro de 2006, as forças israelitas atingiram e mataram dois membros de equipas médicas do Crescente Vermelho, quando estes tentavam evacuar uma vítima, morta por disparos israelitas na zona de Beit Lahia. Ao mesmo tempo, o Hospital de Beit Hanoun continua cercado por tanques israelitas e veículos blindados, que não permitem que as equipas médicas e as vítimas possam aceder ao hospital.” – “Sociedade Palestiniana do Crescente Vermelho”, 5 de Novembro de 2006
Apenas duas histórias das muitas que passam por mim todos os dias, mas onde é que está a indignação dos media Ocidentais? Claramente, os árabes são “unter mensh” juntamente com o resto dos habitantes do mundo que nos rodeia, no que concerne ao Ocidente.
Bem, eu poderia continuar numa interminável série de invocações do tipo de pesadelos infligidos nas pessoas do Médio Oriente, alegadamente sob o manto da “guerra ao terrorismo”. A realidade, é claro, é que somos nós, no Ocidente, que estamos a fazer uma guerra de terror em cima deles.
Eu sei que já disse antes que há uns anos atrás li uma novela soviética ficcionada chamada “Snail on the Slope” [Caracol no Declive], dos irmãos Arkady e Boris Strugatsky. A história é sobre um planeta que é colonizado por um país não muito diferente da antiga União Soviética.
O planeta consistia numa enorme floresta sentimental que se opunha fortemente a ser cortada pelos colonizadores, na sua tentativa de a “terraplanar”, e ela naturalmente deu luta. De qualquer forma, os colonizadores deram consigo a defender enclaves solidamente fortificados, brutalmente expulsos da floresta.
Um homem tentou persuadir os responsáveis de que estavam a travar uma luta que iriam perder, a não ser que destruíssem a floresta, o que significava efectivamente destruir o planeta. Obviamente que os líderes decidiram exilar o objector e continuaram a sua política de subjugação. E claro que a ideia de que a floresta pudesse estar viva e pensar como um organismo único, estava simplesmente para além da compreensão das “autoridades”.
Percebi a alegoria na altura mas parece-me que hoje em dia, “Snail on the Slope” ainda se aplica mais aos habitantes do chamado mundo desenvolvido, desesperadamente agarrados àquilo a que nos convenceram que eram os nossos direitos; os nossos enclaves de consumo e passar por cima do que resta à nossa volta, independentemente das consequências.
Entretanto, a conhecida (nem tanto) história de horrores infligidos no povo do Líbano pelo estado de Israel, não tem praticamente nenhuma cobertura mediática. Mas uma história da BBC World Service, transmitida na madrugada de 7 de Novembro de 2006 dá-nos uma dica sobre a mentalidade do estado sionista. De forma pouco surpreendente, esta é uma história que a BBC não irá transmitir nas notícias da televisão ou rádio regulares, com medo de ofender os seus donos.
Um reservista anónimo das Forças de “Defesa” de Israel (FDI) que não se conseguiu calar mais, revelou que ao fim de cinco dias de massacre, os lançadores de rockets sob o seu comando, dispararam 1800 bombas de fragmentação no sul do Líbano. Cada bomba de fragmentação contém 664 “bombinhas” e cerca de 40% delas não detonaram, totalizando 1,2 milhões destes diabólicos mecanismos. Assim, os campos e vilas do sul do Líbano estão conspurcados com cerca de meio milhão destas armas assassinas fornecidas pelos EUA, e estão a matar uma média de 4 pessoas por dia, que circulam pelos seus campos e vilas.
Alegadamente apontadas a unidades do Hezbollah, elas transformaram milhares de hectares de território libanês em áreas onde não se pode ir, que era a óbvia intenção. Como explicou o soldado das FDI, os rockets Katushya do Hezbollah são lançados ao ombro (não é mais do que um tubo de metal) e por isso, segundos depois de ter disparado, o soldado do Hezbollah muda de sítio, e assim só por mero acaso é que as bombas de fragmentação de Israel atingiriam o alegado alvo. E temos de presumir que estes terão sido apenas uma fracção do total disparado no Líbano.
Mas vejamos, em plena luz do dia, Israel lançou um ataque assassino sobre as pessoas do Líbano usando armas com a mais horrenda destruição. Um ataque apontado não ao Hezbollah mas à generalidade da população e às infraestruturas cruciais necessárias no dia a dia. No entanto, nós no chamado mundo desenvolvido, deixámo-nos estar e não fizemos nada.
Para além dos “suspeitos do costume”, não houve nenhum grito de revolta de cidadãos desta nossa nação “civilizada”. Deixámo-nos ficar e vimos o “nosso” governo condenar o crime de Israel contra a Humanidade não fazendo nada, excepto balbuciar piedosos lamentos. Já há no entanto, um precedente histórico, quando a força aérea de Hitler destruiu Guernica durante a Guerra Civil Espanhola, e a Grã-Bretanha e resto do Ocidente declararam neutralidade e deixaram-se estar não fazendo nada excepto balbuciar as mesmas frases vazias.
Mas será suficiente dizer que a razão por que fazemos pouco ou nada acerca das actividades das nossas elites políticas assassinas, é por não estarmos informados ou estarmos a ser mal informados, ou há aqui algo de mais fundamental a ter em conta nesta questão?
Seremos equivalentes ao Caracol no Declive, tentando agarrarmo-nos àquilo que julgamos serem as nossas vantagens, mesmo destruindo a própria base delas, tal como os colonizadores destruíram a floresta que sustentava a vida? Não podemos dizer que não sabemos nem vemos o que se está a passar. Não temos desculpa para a nossa inacção excepto talvez o simples facto de não considerarmos, como nação, as vidas de outros como verdadeiramente humanas, tão corrosiva e penetrante é a ideologia racista do sistema imperialista.
Mas ao mesmo tempo também parece que muitos milhões de nós estão profundamente infelizes e insatisfeitos com a vida mesmo que consigamos consumir montanhas de porcaria que nem precisamos nem podemos realmente pagar. Mas estes restos de plástico isolam-nos da realidade das nossas acções, adiando o inevitável. Pior, deixam a factura para as gerações futuras pagarem (presumindo, claro, que vai cá estar alguém para pagar).
Então o que é que temos aqui? Em primeiro lugar, revela o absoluto e completo falhanço do chamado sistema democrático, quando vemos o comportamento infame dos “nossos” deputados Trabalhistas de apoio às políticas genocidas do governo de Blair, que se importaram mais com o seu engrandecimento pessoal do que com princípios, quando só doze dos trinta e oito deputados Trabalhistas que tinham anteriormente assinado petições exigindo um inquérito sobre a invasão do Iraque, votaram realmente a favor do inquérito. O resto apoiou Tony Blair.
E a cada dia que passa, mais relatos aparecem, detalhando a destruição existente e a prevista daquilo que era o nosso belo planeta azul/verde. Quanto tempo ainda temos, não é claro, até pode já ser tarde. No entanto uma coisa é óbvia para mim, é altura de escolher de que lado estamos. Já não temos outra escolha, e que irónico isto é, dado que nos têm convencido que a grande vantagem do capitalismo é a ilimitada “escolha”, mas a que custo?
Por muito que me custe dizer isto, parece cada vez mais que a mudança apenas acontecerá quando o sistema como um todo colapsar, quando já não puder suportar o nosso extravagante modo de vida.
Não seria tão mau se o colapso se confinasse ao mundo desenvolvido, mas claro que isso não acontecerá. As economias dos países em desenvolvimento foram tão pervertidas pelas nossas necessidades que também elas pagarão os custos do nosso comportamento egoísta.
Então porque é que os elementos progressistas do nosso mundo não responderam à crise com que nos confrontamos?
Será porque o seu próprio mundo de privilégio é igualmente ameaçado, e se assim é, o que é que isso nos diz sobre o caminho que temos seguido nestas décadas?
Vale a pena considerar, por exemplo, que um país como Cuba, que é considerado como pobre, e consegue apesar de tudo produzir médicos e professores suficientes para suprir as suas necessidades e ainda tem a capacidade de os enviar a vários países, em todo o mundo. Também transformou completamente a sua agricultura para ser totalmente orgânica e livre de pesticidas. A sua riqueza está obviamente noutra coisa que não os bens materiais. Sim, tem problemas (muitos causados pelo embargo dos EUA), mas não estamos a falar sobre a utopia.
É obvio que é altura dos socialistas reordenarem completamente as suas prioridades. Não chega falar sobre o socialismo mas sim ter em consideração de que tipo de socialismo é que estamos a falar, e isto antes que seja tarde demais para ainda termos o luxo de podermos escolher.
Se, como parece provável, é necessária uma completa reordenação de prioridades, e isto é algo inevitável, e também é obvio que o capitalismo não apenas se recusa mas é ainda por cima incapaz de tomar as medidas necessárias, então tem de ser claro que qualquer programa socialista tem de conter a seu tempo, a completa reestruturação das nossas infraestruturais industriais, agrícolas e de transporte.
Para além disso, eu acredito que as sementes para tal mudança já estão presentes, apesar de actualmente limitadas a secções mais abastadas e com maiores habilitações da sociedade.
Desabituar a nossa actual geração do seu vício dos automóveis e produtos de consumo, não é uma tarefa fácil, mas podem ter a certeza que eles não terão outra escolha.
Um papel importante na transformação pode ser tido por aqueles que dedicaram as suas vidas ao estudo dos efeitos do capitalismo no planeta, bem como por aqueles que estão lentamente a acordar para a realidade destrutiva do capitalismo na nossa saúde física e mental. Os grandes meios de comunicação falam sobre estas consequências mas evitam a causa óbvia, de facto eles fazem tudo para evitar a clara ligação ao capitalismo. [1]
Não é possível escapar ao facto de que o nosso actual “estilo de vida” é insustentável. Ou agimos agora ou deixamos que o caos o faça por nós, ou seremos os proverbiais caracóis num declive?
Nota
1. Ver especialmente:
‘Climate Change– “Welcome to Mars (or North Korea)!” The Great Media Silence on Causes and Solutions’, 31 de Janeiro, 2006.
‘Cheerleading the Climate Criminals – Part 1’, 1 de Setembro, 2005.
‘Cheerleading the Climate Criminals – Part 2’, 2 de Setembro, 2005.
‘SILENCE IS GREEN The Green Movement And The Corporate Mass Media’, 3 de Fevereiro, 2005
Texto de William Bowles publicado a 9 de Novembro de 2006 em http://williambowles.info/ini/2006/1106/ini-0461.html. Traduzido por Alexandre Leite.
Análise ao livro: “Democracy and Revolution – Latin America and Socialism Today [Democracia e Revolução – América Latina e o Socialismo Actual]”, de D.L. Raby
“Só um louco poderia pensar que a solução para os problemas do mundo está no capitalismo” – Hugo Chavez Frias
Gosto mesmo deste livro; em primeiro lugar, a sua linguagem despretensiosa torna-o acessível, ao contrário da usual diarreia que atormenta os escritos académicos, especialmente na “esquerda”, com toda a sua conversa do paradigmático para aqui e da dialéctica para ali.
Mas mais ainda, este é um livro importante porque se atreve a ir onde poucos na “esquerda” se aventuram, hoje em dia; o leque de possibilidades para o Socialismo. Mais ainda, baseia-se em análises bastante credíveis de duas revoluções bem sucedidas, Cuba e Venezuela, e de três que falharam, mas das quais se podem tirar bastantes lições sobre o falhanço, Chile, Nicarágua e Portugal.
“O entendimento universal de que a democracia é o único regime válido – aceite inclusive pela maior parte dos partidos ex-comunistas – esconde a questão de saber o que realmente significa a democracia, e se o liberalismo Ocidental é a única forma válida de democracia e também se a mudança revolucionária é possível por meios democráticos. Estas são também questões centrais que terão de ser colocadas, na procura de uma alternativa política” (pág. 5).
Mas mesmo aqueles casos que esqueceram os assuntos centrais da exploração, têm uma coisa em comum, o papel assumido pelas raízes democráticas e acima de tudo, pela participação directa no processo de tomada de decisões, ultrapassando quase todos os partidos políticos tradicionais de esquerda.
Mas antes de chegar à apresentação propriamente dita da opinião de Raby, vale a pena examinar o que ele tem a dizer sobre o falhanço da esquerda em entender as lições do passado, e ao fazer isso, revela porque falharam os vários socialismos do séc. XX.
“[Apesar de] onde os partidos comunistas ainda terem uma força residual e aderirem a uma linha tradicional anti-sistema… a quase total ausência de renovação teórica mostra que não conseguiram enfrentar as lições do colapso da União Soviética e não têm nada de inovador a oferecer. Com algumas excepções, isto também se aplica à maioria das derivações do comunismo – as muitas variedades de trotskistas e marxistas-leninistas – que ainda são devotos de um partido com centralismo democrático, do monopólio ideológico da dialéctica e do materialismo histórico e de um modelo centralizado de estado socialista” (pág. 3).
Então o que faz de Cuba e da Venezuela um caso diferente? A resposta está nas suas histórias, pois os países da América Latina têm, não apenas
“…uma maior experiência de governo colonial do que qualquer outro, o ‘pátio das traseiras’ do imperialismo dos EUA, têm um maior “caldo” cultural e étnico do que a América do Norte, e também têm uma história de intensa luta popular revolucionária que é menos contaminada por distorções políticas e ideológicas do que em qualquer outro continente… Só na América Latina parece florescer o impulso revolucionário, por isso, para além de Cuba e da Venezuela podemos encontrar os governos progressistas de Lula no Brasil, Kirchner na Argentina, a Frente Amplio no Uraguai e poderosos movimentos populares como os Pachakutic no Ecuador, Evo Morales e o MAS na Bolívia, as FARC e o ELN bem como resistência popular pacífica na Colômbia, o FLMN em El Salvador e no Mexico, os Zapatistas …’ (pág. 8)
Apesar de ser ainda muito cedo para celebrar a queda do imperialismo, Raby assinala o facto de que
“[os] movimentos progressistas e populares, na América Latina, continuam a mostrar vitalidade e criatividade sem paralelo, no actual mundo cínico, unipolar e terrorista.” (pág. 9)
Talvez possa ser argumentado que os acontecimentos na Venezuela e em Cuba não têm relação nenhuma connosco, aqui no chamado mundo desenvolvido, mas Raby argumenta, e eu penso que com razão, que de facto, o ponto central que assombrou as tentativas de construir o Socialismo foi o ponto da democracia (ou antes, a falta dela). Não a versão capitalista, apresso-me a acrescentar, mas a real democracia participativa, que constrói o edifício a partir de baixo.
Este ponto central da argumentação de Raby, pode ser melhor exemplificado com a seguinte citação
“Está intimamente ligado ao conceito de soberania popular, de que a soberania realmente reside nas pessoas como um todo e não em classes dominantes ou nalgum grupo hereditário ou numa instituição privilegiada. As pessoas, acima de tudo, são elas próprias actores políticos pela mobilização colectiva, não apenas pela recepção passiva das mensagens dos media ou pelo voto individualizado” (pág. 11)
Raby também assinala que na América Latina, revolução e democracia significam algo de diferente daquilo que significam na Europa e América do Norte, onde a palavra revolução está associada à “violência irracional e sectarismo dogmático” (pág. 12) e democracia é votar a cada cinco anos e pouco mais.
Na América Latina, “democracia” é
“popularmente associada a direitos colectivos e poder popular, e não apenas a instituições representativas e pluralismo liberal. O conceito também é indissolúvel dos direitos e culturas de grupos étnicos e sociais oprimidos, com fortalecimento dos indígenas, negros e mestiços” (pág. 12)
Para colocar isto num contexto, Raby usa o exemplo da Nicarágua e da Revolução Sandinista, que no final foi derrotada por uma combinação de factores, mas que foi importante porque
“… a Esquerda organizada foi totalmente irrelevante ao processo [de revolução], e apenas deu o seu apoio (no melhor dos casos, pois vários partidos de esquerda se juntaram à oposição reaccionária) quando a vitória já estava na mão. Mais uma vez, as pessoas reconheceram a liderança revolucionária muito antes dos políticos ou dos intelectuais. E novamente, a vitória foi conseguida por um movimento amplo, democrático e nacional, ideologicamente flexível mas unido na acção, com um líder individual carismático com um notável dom de oratória e capacidade de acção decisiva” (pág. 17)
Raby volta ao tema da importância de um líder carismático como absolutamente indispensável, ao aflorar a capacidade de Fidel e Hugo Chavez de se ligarem e, ainda mais importante, de ouvirem as pessoas, num diálogo contínuo.
Os discursos de horas, de Fidel, e o programa televisivo semanal de Chavez, “Alo Presidente”, longe de serem exortações de um superior, são efectuados numa linguagem de pessoa comum e são, na verdade, aquilo que se poderia descrever como “pergunta e resposta”, com a pergunta a vir das pessoas.
E aqui, Raby invalida a ideia comummente aceite de que tais líderes são “populistas”, o que está normalmente associado à noção de demagogia e à reacção, e ao fazer isso, redefine o significado da palavra (ele usa o termo “neo-populista”).
O outro mito que Raby efectivamente destrói é o do papel dos militares na conquista da mudança revolucionária, argumentando que
“Existe uma diferente tradição militar na América Latina, uma tradição de oficiais nacionalistas, democráticos e anti-imperialistas como Omar Torrijos no Panamá, Velasco Alvarado no Peru ou Francisco Caamãno Deno na República Dominicana. Na realidade, é uma tradição com profundas raízes, recuando ao tempo da República Socialista do Coronel Marmaduke Grove no Chile (1931), dos “tenentes” do Brasil nos anos 1920 e indo mesmo até aos libertadores do início do séc. XIX.” (pág.17)
E Raby dedica mesmo uma secção completa à revolução falhada de 1974 em Portugal, a chamada “Revolução dos Cravos”, levada a cabo pelo progressista MFA, realmente revolucionário, o Movimento das Forças Armadas. Este movimento advogava “uma estratégia económica anti-monopolista … e uma política social de defesa dos interesses da classe trabalhadora.” (pág. 214)
Raby também desafia o conceito de políticos profissionais, e vai ainda mais longe desafiando a própria ideia de um partido político hegemónico “a liderar as massas”. Não que os partidos políticos sejam irrelevantes, mas as experiências extensamente documentados no livro “Democracy and Revolution” indicam a razão de revoluções em Cuba e Venezuela terem tido sucesso enquanto outras falharam.
Os partidos políticos tornam-se perigosos quando deixam de ouvir e de responder às pessoas; quando acham que têm as repostas todas e caem no dogmatismo e na postura ideológica mono-dimensional, uma situação com a qual tenho a certeza que muitos de vós estão familiarizados.
Raby deixa claro que em todas estas situações, não foram os partidos Comunistas e Socialistas tradicionais que abriram o caminho (embora alguns tenham saltado para o comboio já em andamento) e, de facto, alguns opuseram-se mesmo às acções revolucionárias dos movimentos de base ampla.
Raby resume as experiências revolucionárias em Cuba, Nicarágua, Venezuela e Portugal, da forma que se segue:
“…tudo aponta na direcção de um movimento amplo, popular e democrático, com um líder forte, carismático, fora dos partidos, ideologicamente flexível e inspirado por uma cultura e tradições nacionais, bem como diferentes correntes de pensamento progressista internacional, como os componentes essenciais para o sucesso de uma revolução.” (pág. 19)
Relevantes para nós, no chamado mundo desenvolvido, são as observações de Raby sobre as nossas “democracias liberais” que ele vê, de forma correcta, a degenerarem e a conterem muitas das marcas próprias das anteriores ditaduras militares da América Latina!
“O crescimento do poder executivo, a castração do parlamento, a destruição da democracia no seio dos partidos e das liberdades civis, contribuíram poderosamente para a decepção dos eleitores nos mesmos países que gostam de se apresentar como modelos democráticos para o mundo, mas já nem se regem pelos seus próprios princípios liberais.” (pág. 28)
Há uma lição a reter aqui por nós, e uma que não está esquecida pelas pessoas dos países desenvolvidos que expressam uma vontade de serem reconhecidos, de pertencerem, de participarem, mesmo que esteja esquecida pela chamada Esquerda, excepto em oportunismos como o Respect Party [do Reino Unido] fazendo a corte ao voto muçulmano mas ignorando praticamente todos os outros.
E é aqui que as experiências de Cuba e da Venezuela são usadas com grande eficácia, para demonstrar como poderia ser parecido um “Socialismo do séc.XXI”.
Mas não me interpretem mal, Raby também não se mostra iludido sobre o pape do poder e a importância de um estado central forte
“Uma coisa é reconhecer que o poder do estado revolucionário perdeu variadas vezes as suas bases de democracia popular, e outra coisa é negar a importância de um estado poderoso e a possibilidade de construir uma estrutura de poder não capitalista, baseada na justiça social.” (pág. 57)
Sobre este assunto, Raby cita Atilio Boron de forma sucinta
“… o estado é precisamente onde as correlações de forças se condensam. Não é o único local, mas é de longe o mais importante. É o único a partir do qual, por exemplo, os vencedores podem transformar os seus interesses em leis e criar uma moldura normativa e institucional que garanta a estabilidade das suas conquistas.” – Atilio Boron (2005), em ‘Forum on John Holloway’, Capital and Class 85, Spring.
Raby continua
“É por isso que, apesar do facto do estado Soviético ter cessado há muito a expressão do poder popular, de forma significativa, os cuidados de saúde e a educação continuaram livres e universais, e o desemprego era praticamente nulo até ao colapso da URSS … Boron sustenta que foi a original conquista revolucionária do poder, 70 anos antes, que institucionalizou direitos fundamentais para as pessoas comuns, direitos que sobreviveram ao fim desse modelo revolucionário particular.” (pág. 58)
Marx e o Marxismo também não são abandonados por Raby. Em vez disso, ele volta a eles, citando Marx e Engels sobre a Comuna de Paris de 1871
“A classe trabalhadora não esperava milagres da Comuna. Não têm utopias pré-estabelecidas para introduzir par decret du people. Eles sabem que para conseguirem a sua própria emancipação, e conjuntamente com ela, essa superior forma para a qual a actual sociedade está irresistivelmente a inclinar-se, através dos seus agentes económicos, eles terão de passar por grandes lutas, por uma série de processos históricos, transformando as circunstâncias e os homens.” – Marx e Engels, 1968, 294-5.
Mais importante, Raby não tem ilusões sobre as actuais circunstâncias, pois ele diz que
“A lógica de tal processo revolucionário [como na Venezuela e Nicarágua] e de regimes populares que os precederam, irá apontar necessariamente numa direcção Socialista, apesar de nunca serem capazes de estabelecer um sistema Socialista estável pois isso seria uma contradição (agora mais do que nunca, num mundo globalizado). Em vez disso, estarão numa tensão permanente com o imperialismo e a sua sobrevivência depende da manutenção da mobilização popular e da participação democrática a todos os níveis.” (pág. 65)
Raby chama a isto
“estado revolucionário de poder popular, que pode ser o que o socialismo, como uma fase de transição, realmente é: não pode funcionar com um modo de produção auto-sustentado e distinto, que era a ilusão Estalinista, mas através da sua força democrática popular e militar, pode funcionar num lógica não capitalista ou anti-capitalista… Como estado revolucionário, pode negociar com o capital transnacional numa posição de relativa força, pode criar e proteger uma sociedade baseando-se, em larga medida, na justiça social, na democracia participativa e na soberania económica, mas não pode romper completamente com o sistema capitalista global até ao momento (ainda remoto) em que a revolução e o poder popular/Socialismo esteja espalhado por grande parte do mundo.” (pág. 65)
E é precisamente isso que quer a Venezuela quer Cuba (até agora) conseguiram fazer. No fundo, façam a pergunta de por que razão, apesar de nos dizerem que chegamos ao “fim da história” (isto é, da revolução), Cuba sobrevive e prospera, e o mais original e excitante acontecimento, a Revolução Bolivariana, está a acontecer neste momento?
O espaço e o tempo impossibilitam-me a exploração deste livro de uma forma mais profunda. Há muitos outros aspectos que gostara imenso de focar, sobre assuntos que eu penso serem de relevância directa para nós. Mas se este artigo vos espicaçar a atenção, comprem-no por favor, ou peçam à vossa biblioteca local (se ainda tiverem uma) para o adquirir. Eu acredito que este é um livro importante e oportuno que rompe muitos dos mitos sobre as possibilidades de uma transformação socialista e não apenas na América Latina.
‘Democracy and Revolution –
Artigo publicado por William Bowles a 8/9/2006 em http://williambowles.info/ini/2006/0906/ini-0448.html e traduzido por Alexandre Leite.
Blair… recuou nos planos de tomar uma posição dura sobre o aquecimento global e o Tratado de Quioto, que Washington ainda não assinou… No final, Blair apenas disse: “Temos de agir sobre as alterações climáticas”, mas não entrou em pormenores.
Blair até disse uma piada sobre a interferência dos EUA, “Espero que não seja a Casa Branca a dizer que não concorda com isto. Eles actuam com muita rapidez, este rapazes” – Londres, (AFP), 28 de Maio de 2006.
Parece que finalmente a realidade da mudança climática global chega aos media? A BBC, por exemplo, está a inundar o público com dossiers aterrorizadores com títulos como “Caos Climático”, uma série, e persuadiram o venerável David Attenborough para a apresentação da série, em conjunto com o previsível alinhamento de “especialistas”, devidamente equipados com tabelas e previsões feitas por computador, do iminente desastre. Uma enxurrada de propaganda que procura atirar a culpa do aquecimento global para nós, a população.
Portanto, temos de fazer a “nossa” parte de, consumirmos menos, usar carros mais pequenos, viajar menos, reciclar, comprar produtos locais e por aí fora. Mas vão ao vosso mercado local (se tiverem um que não necessite que usem o carro para lá chegar) e tentem comprar produtos locais, e vejam o que conseguem trazer.
Uma palavra que não é mencionada na avalanche de glaciares a derreterem e na subida do nível do mar, é Capitalismo. Em vez disso, falam dos nossos “estilos de vida” que não são correctos, como se por um processo místico, os nossos “estilos de vida” existissem independentes do sistema económico em que vivemos.
Chama-se a isto, a Quadratura do Círculo, isto é, sem alterar um milímetro a um sistema económico que se baseia na contínua expansão da produção, chamada Crescimento, de alguma forma, através da “eficiência” e de novas tecnologias, podemos reduzir a produção de carbono a níveis que consigam parar a subida da temperatura da Terra.
O que nunca é mencionado, com os quinhentos anos de exploração capitalista e de um literal saque do planeta, dos seus recursos e pessoas, é que fomos exortados a produzir e consumir como se não existisse o dia de amanhã e agora, quando parece não haver amanhã, a culpa é atirada em primeiro lugar para nós.
E a isto segue-se a culpabilização dos “diabos” dos Chineses e Indianos que, cinquenta anos depois da Guerra Fria (e não tão fria), “viram a luz” e embarcaram na mesma louca rota que o Ocidente seguiu nos últimos quinhentos anos. Na realidade, a ameaça da guerra pendia sobre as suas cabeças se não se juntassem ao “clube”. Agora já o fizeram e as economias Ocidentais voltaram convenientemente as culpas para eles! É preciso ter lata!
Portanto, enquanto a Terra aquece, o Ocidente, em vez de lidar com a crise que nos confronta, prefere tornar o mundo mais seguro para o Capital, invadindo os países que possuem os recursos que tornam possível a continuação do Capitalismo. É a loucura total!
Mas procurem em vão, alguma referência a estas contradições nos chamados documentários, fabricados pela Central de Propaganda.
As contradições na mudança da produção do Ocidente, para fábricas com uma economia de mão de obra barata, nunca são mencionadas. Aí, ainda se consegue produzir uma maior quantidade de coisas inúteis, com menores custos (para os capitalistas). Também não é mencionado o facto da Guerra Fria ter sido, em grande medida, uma abertura das economias dos antigos estados socialistas e pós-coloniais, ao capitalismo.
Mas a realidade é que, sem uma fundamental mudança de rumo da produção interminável de “novos” produtos, aos quais o sistema capitalista está inextricavelmente ligado, o aquecimento global é, de facto, irreversível.
Mas procurem em vão, alguma referência ao sistema económico como causa. É um grande truque de magia. A ordem do dia é, tudo na mesma, por isso, é de admirar que o “governo” de Blair esteja agora a forçar a solução nuclear?
Um simples facto é que o capitalismo se baseia num contínuo crescimento e expansão da produção e de novos mercados, à medida que procura maximizar os lucros. Nada, excepto uma revolução, alterará esta realidade fundamental.
Falar em reduzir o consumo, quando toda a lógica do capitalismo é baseada na contínua criação da procura de “novos” produtos, é pura fantasia. Claro, a BBC não vai sugerir que a causa fundamental do aquecimento global seja o sistema económico capitalista, isso era ir longe demais.
E ainda relacionado com isto, num comentário a um dos meus textos de Portugal, MC disse[1]
Não podemos pensar que vamos mudar o mundo até que vocês, pessoas dos países ricos, reconheçam que parte da vossa riqueza veio da forte exploração e implacável empobrecimento dos nossos países, durante séculos.
Uma observação que eu corroboro totalmente e disse isso mesmo. Mas MC prossegue dizendo
Quanto ao consumo em grande escala e à sua uniformidade, não é propriamente uma coisa má, se pensarmos na igualdade. Toda esta conversa sobre a exclusividade no consumo – algo que os grandes meios de comunicação ligam automaticamente à liberdade de escolha – é uma ideia presunçosa e divisória, característica de uma sociedade de classes: no fundo, a exclusividade de um iate ou de um “verdadeiro” queijo Parmesan (ou de um Gucci, Versace ou marca parecida) tem o seu preço.
O consumo em massa é inteiramente um produto da produção capitalista e como tal, baseia-se na produção de mercadorias em massa, em oposição à produção de valores realmente úteis, isto enquanto (talvez) todos preferiríamos iates e carteiras Gucci, o que de facto acontece é que para muito poucos possuírem tais objectos, muitos têm de viver sem eles.
Por outras palavras, a produção da maior parte das mercadorias não é feita pela sua real necessidade mas simplesmente para obter um lucro. Para além disso, é evidente que no fim, as pessoas se sentem insatisfeitas com esse consumo ao apenas criar a necessidade de mais consumo, num ciclo consumista interminável.
MC diz depois
A principal questão é: quando é que o sistema vai mudar de forma a permitir aos mais pobres e explorados do planeta, acesso aos mais básicos bens produzidos em massa, melhorando os seus níveis de vida e promovendo um verdadeiro avanço na condição humana?
As necessidades podem ser satisfeitas sem uma tal produção em massa. Na realidade, as tecnologias que possuímos hoje permitem uma produção em pequena escala de produtos de alta qualidade. Alem disso, como fica amplamente demonstrado pela reinvenção/redescoberta da produção artesanal, as pessoas gostam de produtos feitos à mão. Satisfazem uma real necessidade ao colocarem as pessoas de novo em contacto entre elas, através do próprio objecto; o cunho pessoal e a singularidade do objecto são, por si só, satisfatórios.
Mas de forma a se conseguir atingir isto, será necessário reestruturar a globalidade da economia capitalista, não apenas abolir a propriedade privada de larga escala mas também alterar os nossos objectivos e a nossa relação com a Natureza, algo que não vai ser conseguido da noite para o dia.
Se alguma coisa resulta da evidência do impacto das mudanças climáticas, é o facto de a acompanhar a abolição do modo de produção capitalista, necessitamos de alterar a nossa relação com a Gaia, ao invés de subjugar a Natureza, algo que mesmo as economias socialistas não fizeram, na sua competição com o capitalismo, de forma a satisfazer fundamentalmente necessidades criadas artificialmente. Temos de restabelecer a nossa relação com a nossa casa, a Terra.
De facto, eu sugeria que as pessoas dos países desenvolvidos, em vez de apelarem com base numa visão socialista tradicional, com base na abolição da pobreza, o fizessem baseando-se nos valores de humanidade e na redescoberta do colectivo, ajustando-se melhor à situação.
Esta discussão também se relaciona com os países pobres do mundo, que apesar de materialmente empobrecidos, possuem algo que nós, no mundo desenvolvido já perdemos, nomeadamente um sentimento de pertença, de onde viemos. E isto não é mero sentimentalismo mas baseia-se na minha própria experiência.
Até agora, a esquerda que existe, falhou rotundamente ao não perceber isto, enredada como está, na sua relação histórica com o modo de produção capitalista. Por isso, também não vê que é produto das relações capitalistas, um processo que não é neutral, mas inteiramente determinado pelo modo de produção capitalista.
Fica óbvio que não se trata apenas de consumir menos mas de alterar inteiramente o que produzimos e consumimos. Isto significa transformar os objectivos e valores da sociedade, algo que requer que olhemos novamente para a forma como nos organizamos politicamente. Implica deitar fora a falsa noção que nos tem sido dada sobre o que é a democracia e como funciona. Não é tarefa fácil de cumprir, alimentados como temos sido numa dieta de alegada representação, em vez de uma participação directa no processo de organização social e de tomada de decisões.
Entretanto, temos necessidades imediatas e urgentes. Em primeiro lugar, resistir e derrotar um sistema desesperado, que destrói mais do que cria, que gasta milhares de milhões em armas de destruição em massa quando o mundo enfrenta uma crise de proporções literalmente globais. Fazer a ligação entre esta crise global e o capitalismo, é a nossa primeira ordem de trabalho.
Apesar de concordar na generalidade com as observações do MC, uma análise fundamentada na “culpa” daqueles de nós que tiveram a sorte suficiente para ter nascido no mundo desenvolvido, não é a resposta, pois não foca os assuntos com que nos confrontamos, mesmo que faça alguns sentirem-se melhor.
[1] – MC comentou um texto anterior na página inglesa. Os comentários ao tal texto escrito em Portugal podem ser vistos em http://www.haloscan.com/comments/liamini/ini_0417/#25663
Traduzido por Alexandre Leite, a partir de um texto de William Bowles publicado a 3 de Junho de 2006 em http://williambowles.info/ini/2006/0606/ini-0418.html
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